Uma revolta de grande escala estourou no Cazaquistão em resposta ao aumento do custo de vida e à violência do seu governo autoritário. Manifestantes tomaram prédios do governo em muitas partes do país, especialmente em Almaty, a cidade mais populosa, onde ocuparam temporariamente o aeroporto e incendiaram o palácio do governo. Enquanto publicamos isso, a polícia recapturou o centro de Almaty, matando pelo menos algumas dezenas de pessoas no processo, enquanto tropas da Rússia e da Bielorrússia chegam para se juntar a eles na supressão dos protestos. Devemos às pessoas que enfrentam essa repressão saber por que elas se levantaram. No relato a seguir, apresentamos uma entrevista com uma expatriada do Cazaquistão que explora o que levou as pessoas à revolta no Cazaquistão — e explora as implicações dessa revolta para a região como um todo.
“O que está acontecendo agora no Cazaquistão nunca aconteceu aqui antes.
“A noite toda houve explosões, violência policial contra pessoas e algumas pessoas queimaram viaturas, incluindo alguns carros aleatórios. Agora as pessoas estão marchando pelas ruas principais e algo está acontecendo perto de Akimat (o prédio do parlamento).”
— Última mensagem que recebemos de nossa camarada no Cazaquistão, uma anarcafeminista em Almaty, pouco antes das 16h (horário do Leste do Cazaquistão) em 5 de janeiro, antes de perdermos contato.
https://twitter.com/HannaLiubakova/status/1478987772027416576
Devemos entender a revolta no Cazaquistão em um contexto global. Não é simplesmente uma reação a um regime autoritário. Os manifestantes no Cazaquistão estão respondendo ao mesmo aumento do custo de vida que as pessoas vêm protestando em todo o mundo há anos. O Cazaquistão não é o primeiro lugar onde um aumento no custo do gás desencadeou uma onda de protestos — exatamente a mesma coisa aconteceu na França, Equador e em outras partes do mundo, sob uma ampla gama de administrações e formas de governo.
O que é significativo sobre esse levante em particular, então, não é que seja sem precedentes, mas que envolve pessoas que enfrentam os mesmos desafios que todas nós enfrentamos, onde quer que vivamos.
A urgência com que a Rússia está se movendo para ajudar a suprimir o levante também é significativa. A Organização do Tratado de Segurança Coletiva [CSTO], uma aliança militar composta pela Rússia, Armênia, Bielorrússia, Cazaquistão, Quirguistão e Tadjiquistão — com a Rússia dando as ordens — se comprometeu a enviar forças para o Cazaquistão. Esta é a primeira vez que o CSTO envia tropas para apoiar uma nação membro; recusou-se a ajudar a Armênia em 2021, durante seu conflito com o Azerbaijão.
É instrutivo que a guerra entre a Armênia e o Azerbaijão não justificasse a intervenção do CSTO, mas que uma poderosa onda de protesto sim. Como em outros projetos imperiais, a principal ameaça à esfera de influência russa (a “Russosfera”) não é a guerra, mas a revolução. A Rússia lucrou consideravelmente com a guerra civil na Síria e a invasão turca de Rojava, jogando a Síria e a Turquia uma contra a outra para ganhar uma posição segura na região. Uma das maneiras pelas quais Vladimir Putin manteve o poder na Rússia foi reunindo patriotas russos para apoiá-lo nas guerras na Chechênia e na Ucrânia. A guerra — guerra perpétua — é parte integrante do projeto imperial russo, assim como a guerra serviu ao projeto imperial americano no Iraque e no Afeganistão. A guerra é a saúde do estado, como disse Randolph Bourne.
As revoltas, por outro lado, devem ser suprimidas por todos os meios necessários. Se os milhões de pessoas na Russosfera que definham sob uma combinação de cleptocracia e neoliberalismo vissem uma revolta ter sucesso em qualquer um desses países, eles se apressariam em fazer o mesmo. Olhando para as ondas de protesto na Bielorrússia em 2020 e na Rússia há um ano, podemos ver que muitas pessoas estão inclinadas a fazê-lo, mesmo sem esperança de sucesso.
Em democracias capitalistas como os Estados Unidos, onde as eleições podem trocar uma gangue de políticos egoístas por outra, a própria ilusão de escolha serve para distrair as pessoas de agir para trazer mudanças reais. Em regimes autoritários como Rússia, Bielorrússia e Cazaquistão, não existe tal ilusão; a ordem dominante é imposta apenas pelo desespero e pela força bruta. Nessas condições, qualquer pessoa pode ver que uma revolução como o único caminho a seguir. Na verdade, os governantes dos três países devem seu poder à onda de revoluções que ocorreram a partir de 1989, ocasionando a queda do Bloco de Leste. Não podemos culpar seus personagens por enxergar que somente uma revolução poderia trazer uma mudança em suas circunstâncias.
Revolução — mas com que propósito? Não podemos compartilhar o otimismo dos liberais que imaginam que a mudança social no Cazaquistão será tão simples quanto expulsar os autocratas e realizar eleições. Sem mudanças econômicas e sociais profundas, qualquer mudança meramente política deixaria a maioria das pessoas à mercê do mesmo capitalismo neoliberal que as está sofrendo hoje.
E, de qualquer forma, Putin não desistirá tão facilmente. A mudança social real — na Russosfera como no Ocidente — exigirá uma luta prolongada. Derrubar o governo é necessário, mas não suficiente: para se defender das futuras imposições políticas e econômicas, as pessoas comuns terão que desenvolver o poder coletivo em uma base horizontal e descentralizada. Este não é o trabalho de um dia ou ano, mas de uma geração.
O que anarquistas têm a contribuir para esse processo é a proposta de que as mesmas estruturas e práticas que desenvolvemos no curso da luta contra nossos opressores também devem servir para nos ajudar a criar um mundo melhor. Anarquistas já desempenharam um papel importante no levante na Bielorrússia, mostrando o valor das redes horizontais e da ação direta. O sonho do liberalismo, de refazer o mundo inteiro à imagem dos Estados Unidos e da Europa Ocidental, já se mostrou vazio — os Estados Unidos e a Europa Ocidental estão implicados em muitas das razões pelas quais os esforços para realizar esse sonho falharam no Egito e Sudão e outros lugares. O sonho do anarquismo ainda precisa ser experimentado.
Em resposta aos eventos no Cazaquistão, alguns supostos “anti-imperialistas” estão mais uma vez repetindo o eterno discurso da mídia estatal russa de que toda oposição a qualquer regime aliado da Rússia de Putin só pode ser resultado da intervenção ocidental. Isso é particularmente notório quando as nações na esfera de influência da Rússia abandonaram amplamente qualquer pretensão de socialismo, entregando-se ao tipo de política neoliberal que desencadeou a revolta no Cazaquistão. Em uma economia capitalista globalizada, na qual todos estamos sujeitos ao mesma busca por lucro e precariedade, não devemos deixar que potências mundiais rivais nos joguem uns contra os outros. Devemos ver através de toda a charada. Vamos fazer causa comum entre os continentes, trocando táticas, inspiração e solidariedade para reinventar nossas vidas.
As pessoas comuns no Cazaquistão que se levantaram esta semana mostraram o quão longe podemos ir — e quão mais longe temos que ir juntos.
https://twitter.com/izvestia_ru/status/1479012845690011650
Forças russas partindo para o Cazaquistão.
O Pano de Fundo da Revolta
No início do dia 6 de janeiro (horário do Cazaquistão oriental), depois que os apagões da internet tornaram impossível completar uma entrevista com participantes do movimento em Almaty, conduzimos a seguinte entrevista com uma advogada anarquista do Cazaquistão que vivia no exterior.
Para contextualizar, quais projetos ou movimentos anarquistas, feministas e ecológicos existiram no Cazaquistão no século 21?
No início, houve oposição ao primeiro presidente ex-comunista, Nursultan Nazarbayev, que acabou liderando o Cazaquistão na era pós-soviética. A partir de meados da década de 1990, ele começou a se tornar mais autoritário, mudando as estruturas de governança para adquirir poderes presidenciais mais fortes. Isso gerou oposição a Nazarbayev dentro da elite política e por todo o espectro político. Surpreendentemente, comunistas, social-democratas, centristas e grupos pró-empresariais colaboraram para exigir uma constituição mais democrática com autoridade presidencial limitada.
Quanto aos movimentos dos de baixo, havia anarquistas, que eram mais um movimento clandestino, e havia um movimento socialista, cujo líder acabou fugindo do Cazaquistão. Havia nacionalistas e islamistas radicais também, mas, novamente, eles não eram tão populares. Eles também eram movimentos clandestinos.
Quanto aos grupos ambientalistas, se eles tiveram alguma atenção pública, foi principalmente de grupos de defesa legal. No Cazaquistão, só uns seis partidos registrados têm permissão para participar das eleições; o resto é proibido. No entanto, existem muitos grupos de defesa de jurídica.
O governo nunca permitiu que qualquer oposição real participasse das eleições desde os anos 2000. Os candidatos tinham faces diferentes, mas os mesmos pensamentos, para fazer com que parecesse um ambiente político “competitivo” no qual um homem forte constantemente ganha o tempo todo — semelhante à situação na Rússia, Bielorrússia e outros países pós-soviéticos ditatoriais.
Existem partidos de oposição no Cazaquistão?
Quanto aos partidos de oposição, basicamente não há nenhum no Cazaquistão. Costumava haver tais partidos nas décadas de 1990 e 2000, mas todos foram fechados ou proibidos pelo governo. Hoje, existem pessoas que afirmam representar a oposição, mas vivem em países como a Ucrânia. Eles não têm nenhuma conexão real com a rua.
Também existe um certo tipo de rivalidade entre eles: já vi todos acusando uns aos outros de colaborar com o governo. Eles tentam atrair os cidadãos insatisfeitos a fazer coisas que não representam realmente qualquer ameaça ao governo, coisas que dão a ilusão de fazer mudanças, como dizer às pessoas para terem um diálogo pacífico com as autoridades locais ou para participarem nas eleições, arruinando propositalmente o voto como forma de “protestar” contra a eleição — qualquer tática que dê a ilusão de lutar contra o governo, quando na realidade é apenas uma perda de tempo.
Nos últimos anos, esse tipo de oposição realmente começou a aparecer dentro do país também; do nada, havia ativistas aleatórios formando movimentos políticos e fazendo piquetes sem experimentar qualquer forma de perseguição, enquanto as pessoas comuns são sempre detidas pela polícia imediatamente, sempre que protestam.
Um grupo de oposição incomum — não posso dizer se é uma oposição controlada — se chama Escolha Democrática do Cazaquistão. É liderado por um empresário que vive na França chamado Mukhtar Ablyazov. Se você pesquisar o nome dele, verá artigos sobre supostos casos de lavagem de dinheiro e ações judiciais. Ele foi um ministro na década de 1990; quando se juntou à oposição da oposição, acabou preso pelo governo do Cazaquistão. Ele foi libertado, mas acabou fugindo do Cazaquistão e vivendo no exílio. Desde então, ele liderou a oposição política com maior apoio nas redes sociais. Quase todas as pessoas associadas a seu movimento foram perseguidas e presas; isso vem acontecendo desde 2017. Todos os protestos que ele organizou do exterior foram reprimidos, com uma presença policial massiva em áreas públicas. Já houve casos em que a internet foi derrubada em todo o país.
De qualquer forma, o que está acontecendo no Cazaquistão agora é completamente inesperado.
Que tensões no Cazaquistão antecederam esses eventos? Quais são as linhas divisórias na sociedade cazaque?
O que realmente levantou a população aconteceu na cidade de Zhanaozen. Esta cidade produz riquezas com o petróleo, mas as pessoas que lá vivem estão entre as mais pobres do país. A cidade é conhecida pelos sangrentos acontecimentos de 2011, quando houve uma greve trabalhista e o governo ordenou que a polícia atirasse nas pessoas. Essa tragédia permaneceu na mente das pessoas, especialmente entre os residentes da cidade e, desde então, outras pequenas greves ocorreram nas indústrias de petróleo — embora tenham sido pacíficas e não tenham levado a derramamento de sangue. Desde 2019, greves e protestos se tornaram mais comuns por lá. Ao mesmo tempo, devido a fatores econômicos, as pessoas se tornaram mais ativas na política em todo o país, à medida que os preços do petróleo despencavam em todo o mundo, impactando economicamente o Cazaquistão. À medida que a moeda do Cazaquistão, Tenge, enfraquecia, as pessoas podiam pagar cada vez menos.
Também existem problemas sérios no Cazaquistão: falta de água potável nas vilas, questões ambientais, pessoas que vivem com dívidas, corrupção e nepotismo em um sistema no qual qualquer objeção pode ser facilmente suprimida. A maioria das pessoas continuou vivendo nessas condições, enquanto a economia serviu a empresários bilionários do Cazaquistão que têm ligações com funcionários do governo e outras pessoas importantes. No início dos anos 2000, as pessoas no Cazaquistão tiveram um respiro de esperança enquanto a economia crescia graças às reservas de gás natural; como consequência, o padrão de vida de muitas pessoas aumentou. Mas tudo mudou em 2014, quando os preços do petróleo caíram em todo o mundo e a guerra na Ucrânia levou a sanções contra a Rússia — o que afetou o Cazaquistão, uma vez que é dependente da Rússia.
Houve alguns pequenos protestos de 2014 a 2016, mas foram facilmente reprimidos. De 2018 a 2019, eles cresceram mais, em parte graças ao referido empresário da oposição, Mukhtar Ablyazov, que usou as mídias sociais para ganhar força. Protestos políticos e ativismo foram organizados sob a bandeira do partido Escolha Democrática do Cazaquistão.
A situação piorou depois de 2020, quando a pandemia de COVID-19 aconteceu. Pessoas perderam seus empregos; algumas ficaram sem como pagar por mercadorias, recebendo muito pouco apoio do governo, enquanto as restrições de saúde tornaram as pessoas mais frustradas e desconfiadas do governo. E então o preço dos produtos aumentou especificamente para alimentos — isso aconteceu em todo o mundo, mas para o Cazaquistão, teve um impacto considerável.
Voltando à cidade de Zhanaozen, que tem uma história de derramamento de sangue, o preço do gás liquefeito disparou — no mesmo lugar onde o combustível é realmente produzido. Esse custo tem crescido constantemente nos últimos dez anos, mas finalmente aumentou ainda mais quando o governo parou de subsidiá-lo, deixando que o mercado decidisse.
Já houve pequenos protestos sobre o assunto naquela cidade — mas em 1º de janeiro de 2022, o preço do gás liquefeito que é usado para mover veículos dobrou inesperadamente. Isso deixou o povo enfurecido. Eles protestaram na praça em grande número. As autoridades pareciam receosas de dispersar o protesto. Outras aldeias da província se levantaram e começaram a bloquear estradas em protesto. Então, em poucos dias, os protestos se espalharam por todo o país.
O que começou com um protesto contra o aumento do preço do gás cresceu em grande parte por causa dos outros problemas que mencionei anteriormente. Isso motivou as pessoas a entrarem em greve e ir mais para as ruas.
Descreva as diferentes agendas dos diferentes grupos em ambos os lados desta luta. Existem facções ou correntes identificáveis nas manifestações?
No início, o governo ignorou os problemas do preço do gás tentando fazer as pessoas se acostumarem, chegando a culpar os consumidores pela alta demanda. Eventualmente, eles baixaram o preço, mas isso não parou os protestos. Então, o Estado basicamente negou seu envolvimento em permitir que os preços do gás inflassem — mas, à medida que os protestos se intensificaram, o governo começou a conceder mais para tentar acalmar as pessoas. Por exemplo, eles se comprometeram a introduzir algumas políticas para oferecer assistência econômica às pessoas, depois de ignorá-las por anos.
Mas os protestos ainda não pararam. Poucas pessoas confiam ou apoiam o governo. As pessoas que se manifestam querem simplesmente uma vida melhor, como imaginam que as pessoas tenham nos países europeus desenvolvidos. Claro, existem diferentes demandas de pessoas diferentes — algumas buscam a renúncia de todo o governo, enquanto outras querem uma nova forma de governo democrático, especificamente uma forma parlamentar sem um presidente executivo, e ainda outras querem mais empregos e indústria e melhores condições social.
Alguns dos confrontos e saques mais violentos estão ocorrendo na antiga capital soviética de Almaty, que é a metrópole financeira do Cazaquistão. As pessoas estão saqueando lojas e incendiando coisas. Elas tomaram o prédio do governo local e o incendiaram.
O governo tem contribuído para essa situação, porque não cumpriu as demandas por renúncia e formação de um novo sistema político democrático. O atual presidente do Cazaquistão, que é um aliado próximo do primeiro presidente, Nazarbayev, está colocando lenha na fogueira ao se recusar a transferir seu poder. Quanto mais tempo ele mantiver sua posição, mais violência haverá, uma vez que nem o governo nem os manifestantes podem se fazer acordos. Enquanto isso continuar, as pessoas que estão cometendo atos violentos poderão continuar a se safar. Há ilegalidade em Almaty; parece que ninguém sabe ao certo quem está no comando agora, já que o gabinete do prefeito foi incendiado e ele desapareceu das vistas do público. A cidade inteira está cercada por manifestantes armados circulando.
A cidade está sob toque de recolher, em teoria, mas na prática, as autoridades se foram ou juntaram-se aos protestos — então a cidade é como uma comuna [isto é, como a Comuna de Paris] pelo que ouvi. Neste ponto, considerando como os eventos estão se desdobrando, eu não chamaria as pessoas de manifestantes, mas sim de revolucionárias — especialmente vendo civis armados lá.
Apresente uma cronologia dos eventos da semana passada.
O protesto começou na cidade produtora de petróleo de Zhanaozen em 2 de janeiro. Na manhã seguinte, outras cidades e vilas no oeste do Cazaquistão começaram a protestar em solidariedade.
Os protestos mais massivos ocorreram à noite, enquanto a agitação se espalhava para outras cidades, incluindo Almaty. Tarde da noite em 4 de janeiro, as pessoas em Almaty marcharam para a praça principal em frente à prefeitura. Imensas tropas policiais foram posicionadas lá. Os confrontos estouraram, mas os manifestantes levaram a melhor.
Eles foram dispersos na madrugada de 5 de janeiro, mas se reagruparam por volta das 9h de uma manhã de nevoeiro. Alguns policiais até mudaram de lado e se juntaram ao protesto. Eventualmente, os manifestantes marcharam para a praça novamente por volta das 10 horas e conseguiram invadir a prefeitura, colocando o prédio em chamas. Oficiais de segurança do governo fugiram de Almaty, deixando a cidade sob o controle dos manifestantes.
Desde então, parece que o presidente mandou algumas tropas para lá novamente na tentativa de assumir o controle. Não sei como está se desenrolando, mas ouvi dizer que durante a noite de 5 de janeiro ou no início da manhã de 6 de janeiro, pessoas começaram a saquear e roubar armas e há relatos de tiroteios.
Em outras cidades, é mais tranquilo, com protestos massivos nas praças. Acho que os manifestantes ocuparam os prédios do governo local em algumas outras cidades, mas, pelo que sei, esses são menos caóticos em comparação com Almaty.
Na capital, Nursultan, está mais tranquilo, mas as pessoas viram um grande número de policiais de choque em torno do palácio presidencial. Basicamente, todo o palácio presidencial está trancado.
Em suma, todo o Cazaquistão é agora como um Jogos Vorazes. Se você já viu a trilogia Jogos Vorazes ou se conhece um resumo básico do enredo, sabe do que estou falando. As pessoas estão assumindo o controle de várias cidades, uma por uma. Novamente, o presidente não quer sair e deixar a oposição reformar o sistema. Então, se isso não acontecer, creio que haverá mais caos até que o governo seja derrubado ou o protesto seja brutalmente suprimido.
Você acha que os participantes desses protestos toma algum ponto de referência dos movimentos de protesto que eclodiram na França, no Equador e em outros lugares do mundo em resposta ao aumento dos preços dos combustíveis? O que informa as táticas que estão usando?
Acho que muitos deles são influenciados pelos protestos que ocorreram em outros países pós-soviéticos, como Bielorrússia e Quirguistão. Parece que em Almaty, os residentes seguiram o exemplo do vizinho Quirguistão, onde as pessoas também invadiram o governo e incendiaram prédios — mas, em comparação com o Quirguistão, o governo foi derrubado mais rapidamente. O Quirguistão passou por três revoluções até agora; considerando sua proximidade e laços culturais com o Cazaquistão, uma vez que ambos os países falam línguas turcas, acho que seu exemplo desempenhou um papel significativo no Cazaquistão.
Quais são as possibilidades para o futuro?
Do meu ponto de vista, posso imaginar alguns cenários. Ou o governo renuncia — ou é derrubado — e o Cazaquistão começa a trilhar o caminho da democratização, ou o governo suprime o levante com um tremendo uso da força, inclusive envolvendo outros países.
O presidente do Cazaquistão, Kassym-Jomart Tokayev, está pedindo ao CSTO [Organização do Tratado de Segurança Coletiva, uma aliança militar formada pela Rússia, Armênia, Bielorússia, Cazaquistão, Quirguistão e Tadjiquistão] que envie soldados “mantenedores da paz”. Em suma, o presidente está convidando tropas estrangeiras ao Cazaquistão para reprimir os protestos. Ou os manifestantes armados de alguma forma repelem essas forças e o governo cai, ou os revolucionários desistem e são esmagados.
O Cazaquistão enfrenta um futuro sombrio. É uma guerra pela liberdade ou derrota, e a derrota significaria uma perda potencial de mais liberdades e possivelmente de soberania.
O que as pessoas de fora do Cazaquistão podem fazer para apoiar os participantes da luta?
A única maneira realista de as pessoas de fora do Cazaquistão apoiarem é chamar mais atenção para os eventos e talvez organizar algum tipo de ajuda.
Conclusão: uma visão da Rússia
No texto a seguir, um anarquista russo reflete sobre as implicações do levante no Cazaquistão para a região. Você pode ler uma perspectiva dos anarquistas bielorrussos aqui.
Após décadas de repressão, fracassos e derrotas, por que a esperança está crescendo continuamente, como vemos na Bielorússia, Rússia, Quirguistão e agora no Cazaquistão? Por que, depois que nossos parentes, amigos e vizinhos caem, mortos a tiros pela polícia ou pelo exército, as pessoas ainda lutam? Como é que ainda temos essas chances de experimentar o vento da mudança e da emoção, que nos dá um gostinho de tudo o que nossas vidas poderiam ser?
Podemos sentir algumas respostas nas falas do músico cazaque Ermen Anti de uma banda chamada Adaptation:
“Não importa o quanto eles atirem, as balas não serão suficientes.
Não importa o quanto eles esmaguem, mesmo assim
As mudas da raiva justa estão germinando
filhos de Prometeu, levando fogo para as pessoas de um frio congelante.”
Quando olhamos para os eventos das últimas décadas no Cazaquistão, Bielorrússia, Rússia e Quirguistão, precisamos nos perguntar o que a cooperação entre iniciativas e movimentos de luta pela libertação poderia alcançar em nível internacional. Essas conexões podem nos permitir trocar experiências políticas e culturais, para fortalecer a causa comum que os povos desses países devem compartilhar. Ainda assim, em contraste com o quanto as economias e realidades políticas desses países estão interconectadas e interdependentes, os movimentos anarquistas estão desconectados.
O Cazaquistão pode ser um exemplo do que pode acontecer amanhã na Rússia, Bielorrússia e outros países nesta parte do mundo. Hoje, as pessoas na Rússia temem por suas vidas quando pensam em expressar qualquer forma de dissidência. Mas amanhã, podemos ver Zhanaozen e Almaty nas cidades da Rússia, Bielorrússia (de novo!) E outros países. Podemos esquecer as garantias de que “Isso não pode acontecer aqui” — o que pode e não pode acontecer depende, antes de mais nada, do que podemos imaginar e desejar.
Quando as situações se desenrolam como o que vemos hoje no Cazaquistão, podemos ver como é importante estar conectada com outras pessoas em nossa sociedade. Hoje, estamos surpresos — muitas vezes podemos nem estar entre as pessoas nas ruas, lutando e defendendo umas às outras ombro a ombro, ou fazendo outro trabalho importante para apoiar o levante. Para estarmos prontos e conectados, precisamos ser capazes de enfrentar as contradições dentro de nossas comunidades e dentro de nossa sociedade como um todo. Precisamos ser capazes de comunicar nossas ideias e trazer propostas para as pessoas ao nosso redor em situações como essas. Conflitos, desentendimentos e isolamento são camaradas sufocantes que, de outra forma, poderiam dedicar suas vidas à luta. Quando me pergunto o que é necessário para que nos possamos ver nas ruas e nas casas das pessoas, caminhando juntas, cuidando umas das outras e lutando juntos, imagino que nos aproximamos umas das outras de maneiras diferentes — tornando possível que lutemos, nos desenvolvamos, sobrevivamos.
Podemos nos perguntar: o que precisamos mudar na forma como nos aproximamos entre nós e de outras pessoas, como abordamos a luta e nossos movimentos, a fim de torná-los uma fonte de vida e inspiração que possa oferecer às pessoas formas de pensar, lutar e viver?
Por exemplo, nos lembramos do movimento feminista no Cazaquistão, que foi o centro da atenção e do discurso público por alguns anos na década de 2010, que publicou uma revista feminista e trouxe à tona esse tópico no Cazaquistão de uma forma que ninguém havia feito antes, conectando um muitos grupos e comunidades ao longo da linha de fratura de violência doméstica e patriarcado. Este é um exemplo de como podemos nos posicionar para abordar questões que nos conectarão a uma ampla gama de outras pessoas em nossa sociedade.
Nós, nas ex-repúblicas soviéticas, temos uma herança impressionante de resistência e levantes à qual recorrer. Precisamos nos conectar uns aos outros para que possamos acessar essa herança.
Solidariedade e força a todos os que lutam no Cazaquistão e em todos os países pós-soviéticos. Como se costuma dizer, os cães podem latir, mas a caravana deve continuar. Hoje, eles podem pisar em nosso pescoço, mas a luta não para e aqueles que caíram nas ruas de Almaty não serão esquecidos.