Na análise a seguir, anarquistas no Brasil examinam como a pandemia e o crescente populismo de extrema-direita coincidem em uma economia de extração colonial, examinando uma sociedade à beira do colapso. Nesse contexto, projetos auto-organizados de apoio mútuo e defesa coletiva envolvendo entregadores, torcids organizadas, organizações indígenas, ocupações, moradores de favelas e periferias urbanas, antifascistas e outras populações sob ataque podem representar nossa única esperança de sobrevivência .
Leia o texto originalmente publicado em junho de 2020 aqui.
“A história não é feita por um punhado de ativistas com a ideologia correta, mas através de ações imprevisíveis de inúmeros proletários aprendendo a lutar juntos contra o que eles percebem (ainda que de forma imprecisa) ameaçar seu futuro. Eles entram nessas lutas com ideias contraditórias e que só são trabalhadas no processo material de sustentar esses movimentos e empurrá-los para a frente.”
Existe um elemento bastante clichê que acompanha a maioria das distopias da literatura e do cinema, onde uma catástrofe leva ao colapso da civilização conhecida: humanos vivendo em bandos, organizando sua sobrevivência e planejando formas de “reconstruir o mundo que foi perdido”, como se a solução para sua miséria fosse retomar a organização social e a forma econômica que os levou ao colapso. Para grande parte dos personagens dessas obras e seus líderes com discursos épicos, o problema não seria a normalidade de um sistema, mas o seu fim. Podemos ver isso em “Planeta dos Macacos – O Confronto” (2014), “Extermínio” (2002), “Filhos da Esperança”(2006) e diversos outros que flertam com nossos desejos e medos sobre as possibilidades que seguiriam a um desastre, fosse ele um apocalipse nuclear, um vírus mortal ou infertilidade humana, que pudesse abalar nosso modo de vida de maneira irreparável.
Em sua origem francesa, a palavra “dés-astre” indica a perda de conexão com os astros, uma ruptura com o cosmos, com nossa orientação, com nosso destino. Para muitas pessoas em nossa cultura, o fim do capitalismo só poderia aparecer como um evento desastroso que nos deixaria sem chão e sem rumo, como nas distopias: vagando por cidades em ruínas, campos inférteis, poluição extrema, guerras intermináveis, fome e, é claro, doenças mortais se espalhando sem controle. Porém, igualmente para nós, sobrevivendo às crises, desastres e pandemias causadas pelo capitalismo do mundo real, a normalidade já é o problema. A era das crises já chegou e o desastre, o verdadeiro desastre, será continuar tudo como está. Além disso a desigualdade, miséria, opressão, violência e extermínio não são os resultados da ruptura com a normalidade desse sistema em que vivemos, mas as condições criadas para sua manutenção.
O capitalismo não é o primeiro sistema desigual e brutal da história, mas é primeiro sistema econômico-político a colocar em risco a vida em todas as partes do planeta para que uma minoria possa enriquecer e prosperar em um sistema globalmente unificado. Temos dificuldade de encarar esse fato porque esse é o mundo onde habitamos, com o qual nos identificamos, o qual compartilhamos com quem amamos e de onde tiramos nosso sustento, mesmo que às custas de muito sofrimento. Nesse mundo, no entanto, as tragédias estão muito mal distribuídas: uma dúzia de bilionários seguem prosperando e determinando como serão nossos futuros, nossas vidas e nossas mortes, pois eles controlam e desfrutam da maior parte dos recursos do planeta, enquanto o resto de nós luta por empregos cada vez mais precários, para manter uma casa, sobreviver à polícia racista e não acabar em hospitais lotados ou caminhões refrigerados e valas comuns que compõem o novo cenário trazido pela pandemia.
É preciso acabar com a ideia de que o fim do capitalismo é o fim do que sustenta a vida – pois ele é o que ameaça a nossa sobrevivência, impondo uma competição artificial por recursos artificialmente escassos. A própria ficção parece cada vez mais incapaz de representar o futuro como progresso e uma promessa de “dias melhores”. Existe comida, recursos e terra para todas as pessoas, mas quem os controla prefere destruí-los do que compartilhar com todos nós. Vivemos em uma organização social capaz de colocar satélites em órbita para explorar galáxias, mas que decide não alimentar a todos em seu planeta; que produz conhecimento e medicina em graus avançadíssimos, mas não os torna acessíveis a todas as pessoas. Portanto, não nos cansaremos de repetir: o verdadeiro desastre não é o fim do capitalismo, mas sua continuação!
Cientistas e organismos oficiais como a ONU estão tomando da esquerda, de movimentos ambientalistas e anticapitalistas o papel de “alarmistas” ao anunciar crises de proporções globais causadas pela expansão econômica que, até então, não conhece limites que a fazem recuar. Em 2018, o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) anunciouque caminhamos para um catastrófico aumento de temperatura do planeta nos próximos anos, tendo no máximo “12 anos para impedir esse processo”. No início de 2019, a Plataforma Intergovernamental sobre Biodiversidade e Serviços (IPBES) publicou um relatório mostrando que ao menos 1 milhão de espécies animais, vegetais e outras desaparecerão nas próximas décadas – isso inclui grande parte da flora e fauna que conhecemos, mas também os insetos e microrganismos que contribuem para a produção agrícola que nos alimenta. Em agosto de 2020, em plena pandemia, cientistas do mundo todo publicaram o documento “State of the Climate 2019”, alertando que a última década foi a mais quente da história. Rob Wallace, em seu livro “Grandes Fazendas produzem Grandes Gripes”, já assinalava em 2016 as conexões práticas entre o capitalismo, indústria, agronegócio e surtos epidemiológicos como o que estamos vivendo agora.
No meio de todas essas tragédias, vemos governos de esquerda, nas Américas e no mundo, tropeçando em seus próprios limites e sendo incapazes de conter a recente onda da extrema-direita que emerge em diferentes partes do planeta. Não conseguindo ficar longe dos mesmos modelos corruptos e alinhados a interesses capitalistas que diziam combater nos modos de gestão da direita, fracassaram em cumprir as promessas de “incluir os excluídos” enquanto mantém os privilégios dos ricos e o frágil conforto da chamada “classe média” (estratos dos empregados qualificados de baixo nível das várias ocupações, geralmente alinhado aos desejos e ideologias da classe dominante). E aqui não se trata de uma crítica reducionista baseada em um julgamento moral, mas sim de uma dupla constatação: a corrupção é inerente a todos os Estados e ao capitalismo, e ambos estão comprometidos com a multiplicação da miséria, com a divisão entre quem manda e quem obedece, entre quem ostenta e quem morre de fome.
Sendo assim, esses governos ao tentarem sustentar a sua imagem com base em promessas impossíveis de serem cumpridas, são jogados para fora do palco pelas urnas ou em golpes brandos por uma extrema-direita que assume diferentes formas em cada país (podendo ser chamada de “populista”, “fascista” ou “autoritária” dependendo da perspectiva), mas demonstra uma sintonia em nível global bastante óbvia em captar a insatisfação e a desilusão generalizada. O pêndulo da democracia que seguia seu movimento, levando o poder da direita para a esquerda sem nunca alterar o modo profundo de gestão econômico-político parece ter se alterado. Para cada Lula ou Dilma que tenta conter a revolta nas ruas com migalhas acompanhadas de um investimento cada vez maior nos aparatos repressivos e criação de leis para sufocar as mobilizações, como a antiterrorista, surgem novos Bolsonaros e Trumps prontos para dobrar a aposta e se projetar como novos líderes dos que “se revoltam dentro da ordem” e desafiam os limites da democracia e do estado de direito para esticá-los até as fronteiras do autoritarismo. Nesse aspecto poderíamos afirmar que quem hoje clama por mudanças, uma “revolução” reacionária, é a extrema-direita enquanto a esquerda chafurda na tentativa de preservar os escassos avanços econômicos, políticos e sociais que deram para nós como esmolas (mesmo quando foram frutos de uma árdua luta) enquanto nos governavam e gerenciavam a nossa miséria.
O resultado é exatamente o que vemos hoje: do Brasil aos Estados Unidos, da Rússia ao Reino Unido, passando pela Hungria e Índia, líderes que subvertem suas próprias leis, gerindo governos cuja população se afunda na tragédia mortal da pandemia do coronavírus. São a saída para a crise sanitária e econômica como um litro de álcool 70º é a saída para um princípio de incêndio. A única coisa pior do que viver em uma sociedade onde figuras mesquinhas e repugnantes concentram todo o poder e recursos necessários para impor decisões sobre nossa vida e nossa saúde, é viver em uma sociedade onde esses líderes usem esses poderes concentrados para deixar que a doença e a morte pairem sobre nós sem qualquer impedimento.
Escrevemos esse texto enquanto o Brasil enterra 156 mil das 1,1 milhões de pessoas mortas no mundo e passa dos 4 milhões de casos de infecção segundo os números oficiais. A crise sanitária causada pelo coronavírus é o retrato mais fiel de um desastre global previsível e evitável. Diferentemente de intelectuais, filósofos e os mais variados tipos de acadêmicos que em uma verdadeira corrida de textos, livros, papers apressaram-se a fazerem análises categóricas sobre o vírus, a política, a economia, o amor, e todas as (im)possibilidades da pandemia que quase sempre reforçavam suas próprias posições anteriores.
A pior pandemia em mais de um século não é “pedagógica”, não é um recado de Gaia, um castigo divino nem um fator desligado da ação humana no mundo, como o asteroide do filme “Armagedom”(1998) ou o planeta em rota de colisão com a Terra em “Melancolia”(2011), ela é o resultado direto do avanço do capitalismo, do agronegócio e da urbanização sobre os biomas e a vida selvagem. É o efeito material, político e subjetivo de um evento ainda por ser elaborado.
Parecemos então estar mais próximos agora de “O Cavalo de Turim” (2011), de Bela Tarr, para quem o fim do mundo segue ao mesmo tempo estranho e rotineiro, monótono, em uma vida reduzida a mera sobrevivência. Para o próprio diretor esse lento cancelamento do futuro seria assim descrito:
“A maneira como eu vejo o fim do mundo, é muito simples, muito tranquila, sem nenhum espetáculo, sem fogos de artifício, sem apocalipse. Ele vai descaindo até ficar cada vez mais fraco e no fim, acaba.”
-Bela Tarr
Se já não parece ser mais possível (ou até mesmo preferível) adiar o fim, porque ele já está aí, a grande questão agora será lidar com esse fim que não se precipita como revolução mas como crise perpétua. Então é por um outro fim do mundo, em meio ao dés-astre que partimos e só a partir disso poderemos agir.
II. Capitalismo é um Desastre Logístico
“Só serei verdadeiramente livre quando todos os seres humanos que me cercam, homens e mulheres, forem igualmente livres, de modo que quanto mais numerosos forem os homens livres que me rodeiam e quanto mais profunda e maior for a sua liberdade, tanto mais vasta, mais profunda e maior será a minha liberdade. Eu só posso considerar-me completamente livre quando a minha liberdade ou, o que é a mesma coisa quando a minha dignidade de homem, o meu direito humano refletidos pela consciência igualmente livre de todos, me forem confirmados pelo assentimento de todos. A minha liberdade pessoal, assim confirmada pela liberdade de todos, estende-se até o infinito.”
–Mikhail Bakunin, “Man, Society, and Freedom”
Em maio, ao ser questionado sobre paralisar a economia e acatar regras para o isolamento social, Bolsonaro comparou o Brasil a Suécia, dizendo que o país nórdico “não fechou”, sendo um bom exemplo de país que manteve sua “normalidade” diante da pandemia. Na época, o Brasil tinha 13 mil mortos pelo coronavírus e a Suécia pouco mais de 3 mil.
A comparação entre os dois países pode soar absurda em vários sentidos, uma vez que a população sueca é 21 vezes menor que a brasileira, sendo menor até mesmo que as 12 milhões pessoas que vivem apenas no município de São Paulo. Além disso, os 10 milhões de habitantes da Suécia estão amparados por políticas de bem-estar e inclusão social e econômica que a maior parte dos 210 milhões de brasileiros nem sonham. Não queremos, aqui, fazer qualquer elogio ingênuo ao modelo capitalista nórdico, que melhor seria descrito como “o maior condomínio fechado do mundo”. Afinal, para que existam esses “condomínios” globais em Suécias e Noruegas, é preciso existir as periferias globais na América Latina, África e Ásia, servindo de reserva de mão de obra barata, de fazenda para recursos naturais e depósito de lixo operando com regulações convenientemente frouxas. Queremos é chamar a atenção para como o capitalismo assume uma face tão cruel num país como o Brasil, que mesmo contando com o maior sistema público de saúde do mundo, é incapaz de conter a pandemia e seus efeitos, tornando gritantes as desigualdades e linhas de exclusão muito antigas.
O Brasil é um país de proporções continentais, de enorme economia produtiva, porém ainda marcado por uma desigualdade social profunda e uma economia subalterna no mercado global, produtora e exportadora de produtos agrícolas e primários como grãos, minério e petróleo. Dos 15 produtos mais exportados, 14 são primários. Rico em biomas diversos, água, terras cultiváveis, a produção de alimentos em solo brasileiro é a terceira maior do mundo, alimentando 1,5 bilhão de pessoas em todo planeta. Mas essa economia enxerga florestas, rios, o solo e toda vida humana e animal como apenas uma fonte de dólares no mercado externo. Está baseada na propriedade individual, na concentração de riquezas e de terras, no desmatamento, na poluição, na violência no campo, trabalho escravo e na tomada de territórios indígenas – que não conheceu tréguas desde a invasão europeia em 1500 – nem mesmo durante a pandemia.
Enquanto Bolsonaro pede para que brasileiros finjam ser suecos, grande parte da população não tem sequer acesso à água, esgoto ou os documentos para acessar benefícios. Para 35 milhões de brasileiros, nem mesmo lavar as mãos apropriadamente é uma opção porque não existe acesso a água tratada. Cerca de 100 milhões de pessoas, 47% da população brasileira, não tem acesso a uma rede de esgoto. Diferentemente da Suécia, onde o governo decidiu arcar com 90% dos salários para que as pessoas possam ficar em casa, as estimativas apontavam cerca de 46 milhões de brasileiros vivem em 2020 sem documentos, contas no banco ou acesso à internet, invisíveis aos olhos do estado e com dificuldade para acessar o limitado auxílio emergencial – que vale pouco mais da metade de um salário-mínimo, mas já é 4 vezes mais que o mínimo do Bolsa Família. Essa exclusão se reflete diretamente nas estatísticas de impacto do coronavírus – assim como impactava a vida dessas pessoas em tempos de “normalidade”, seja pela miséria ou pela violência que a acompanha.
Violência policial, segurança e controle
O desastroso cenário da pandemia da Covid-19 no Brasil não estaria completo sem o permanente estado de calamidade imposto pelas forças de segurança. No Rio de Janeiro, por exemplo, mesmo com o comércio fechado e a recomendação para que todos fiquem em casa, as mortes por policiais em operações subiram 43% em abril, durante o primeiro mês de isolamento social e quarentena. Entre os 177 mortos pela polícia carioca em abril de 2020, estão João Pedro de 14 anos, morto em casa pela polícia, e João Vitor, de 18, morto por policiais quando movimentos sociais entregavam cestas básicas na Cidade de Deus. Quando em 5 de junho, o STF proibiu operações policiais durante a pandemia, as mortes caíram 70% em toda a cidade. Rafaela Coutinho, mãe de João Pedro resumiu perfeitamente a situação: “Eu estava protegendo o João Pedro de um vírus e ele foi vítima de um vírus muito pior: o vírus de um Estado que mata”.
A destruição do meio ambiente, terras indígenas, morte pela polícia, perseguição política a professores, tudo isso nos mostra que crises não vêm sozinhas. Além disso são usadas para implementar outras medidas que, em momentos de “normalidade”, encontrariam maior atenção ou resistência. O então Ministro do Meio Ambiente afirmou em vídeo que era o momento de passar leis parar facilitar a degradação ambiental durante a pandemia, “enquanto a mídia só vala de Covid”. Obviamente, durante a pandemia vimos acelerar o ritmo de medidas legais para desmantelar políticas de preservação ambiental. E, de fato, a ausência de fiscalização durante a pandemia e o período de isolamento, permitiu criadores de gado, madeireiros e garimpeiros avançarem contra as florestas na Amazônia e no Pantanal, em um aumento de 28% nas queimadas em relação ao ano anterior. E o argumento de Salles e da ministra da agricultura, Tereza Cristina, foi o de que as queimadas nessas regiões, sobretudo no Pantanal, poderiam ser combatidas com a expansão da área destinada à indústria da carne, pois os bois, ao comerem o pasto seco, “atuariam como bombeiros e impediriam as queimadas”. Ao mesmo tempo, entidades e movimentos indígenas e quilombolas denunciam o governo Bolsonaro por implementar um “projeto genocida para limpar a área”, permitir que a Covid-19 avance sobre essas comunidades sem as condições mínimas para resistir. Até o Ministro do STF, Gilmar Mendes, usou a palavra genocídio para descrever as políticas do presidente que, em julho, vetou em um projeto de lei as medidas que garantiam acesso à água potável, materiais de higiene, acesso à internet nas comunidades e materiais educativos para a prevenção da doença em línguas indígenas. Além disso, Bolsonaro vetou a parte que reforça a obrigação do Estado em fornecer atendimento médico especial para indígenas. Até o final de julho, 70 mil indígenas já foram infectados e mais de 2 mil morreram de Covid-19 em todo continente americano. Em pleno século XXI, a mais recente face do projeto colonial que, quando não ataca diretamente os povos indígenas com armas, usa doenças e o descaso para promover a morte de indivíduos e o extermínio de comunidades inteiras – como faz o Estado chileno contra os povos Mapuches na região de Araucania ou o brasileiro contra os Guarani-Kaiowa no Mato Grosso do Sul.
Medidas de vigilância, monitoramento de celulares e controle por câmeras com reconhecimento facial e por temperatura, além do aumento do policiamento foram tomadas de formas e métodos inovadores. Não chegamos a níveis tão intensos como dos bairros confinados de Madri, ou das ruas na Tunísia, onde robôs monitoram cidadãos nas ruas, ou na Bulgária onde em um bairro de maioria cigana vem sendo controlado por drones e aviões lançam detergente na população, ou até mesmo na China onde o monitoramento individualizado de celulares e câmeras que detectam rostos mesmo com máscaras, mas a questão nunca foi a “quantidade” ou a “intensidade” de ameaças oferecidas pelo controle estatal, mas sua existência em qualquer nível.
As medidas de isolamento e intervenção policial para dar fim a reuniões e aglomerações lembram, mesmo que de forma residual, os anos de chumbo da ditadura militar (1964-1985), quando haviam toques de recolher à noite e qualquer encontro com mais de duas pessoas, mesmo apenas casualmente em uma esquina, eram dispersadas pela polícia como uma potencial reunião conspiratória. Para quem se lembra ou ainda vive na pele a herança do estado policial e militarizado que persiste nas periferias e no campo, tais medidas são sempre vistas como hostis por serem impostas de cima, mesmo que “para a saúde de todos”. Talvez o maior dos exemplos de como tais medidas inspiram a fúria popular foi a conhecida Revolta da Vacina em 1904, quando o governo do Rio de Janeiro, então capital do país, implementou um programa de vacinação contra varíola imposto pela força, com policiais invadindo casas e obrigando pessoas a serem vacinadas. Aliado a isso, veio um violento projeto de urbanização higienista que demoliu vilas inteiras e expulsou os pobres para as periferias.
Como agora, tais revoltas não são necessariamente contra a ciência, a medicina ou a preservação da saúde, mas sim contra o autoritarismo e a força dos que querem nos obrigar a aceitar suas decisões sem o menor diálogo e impedir os povos de se organizar e cooperar como iguais pela sua própria saúde. Para tomar um caso recente, em 2019 o governador de São Paulo, João Dória do PSDB, reeditou a lei de 2014 que proibia máscaras em manifestações, como forma de coibir ação de black blocs. Um ano depois, o mesmo governador tornou obrigatório o uso de máscaras em todo o estado para todas as pessoas que saírem às ruas. A evidente ironia do episódio nos ensina o quão vulneráveis e alienados sobre nossas escolhas estaremos se esperarmos que apenas políticos e leis decidam o que é melhor ou mais seguro para nós, a despeito do que queremos.
Linhas de exclusão
A dificuldade em implementar ensino a distância, uma vez que alunos não possuem computador, acesso à internet ou vivem em casas de dois ou até um único cômodo junto de vários familiares, apenas evidencia a enorme desigualdade existente entre estudantes de escolas públicas e privadas. O aumento da violência doméstica durante o isolamento social traz o debate sobre o machismo e a cultura patriarcal instalada em nossa sociedade. Asrevoltas nas prisões por direitos violados e o descaso com os riscos dedisseminação da Covid-19 mostram a brutalidade de um sistema carcerário superlotado, desumano e assassino. A atual situação que ameaça a vida das pessoas no campo, dos povos indígenas e o descaso com os idosos revela a exclusão social a que esses grupos são submetidos por séculos sem acesso a recursos básicos como água, esgoto ou documentação para ter acesso a benefícios e direitos legais.
O que agrava a pandemia não é diferente dos demais desastres que afetam os pobres e excluídos de forma desproporcional. Quando o inverno ou uma grande tempestade atinge uma cidade e várias pessoas sem-teto morrem de frio e casas desabam por terem sido construídas em áreas de risco, é óbvio para todos que a raiz do problema não é o frio nem a chuva em si, mas que pessoas estejam desprotegidas e sem as condições básicas para enfrentar essas situações. Enquanto houver capitalismo, as pessoas na base da pirâmide serão sempre as mais atingidas em qualquer situação de crise ou catástrofe. As diferenças de classe, cor, gênero ou geográficas, apenas ajudam a canalizar o peso dessa tragédia para os grupos historicamente excluídos e desamparados. Como todos esses problemas antigos em nossa sociedade, a crise sanitária é um desastre que tem idade, mas também cor e endereço: em abril o número de pessoas negras mortas pela Covid-19 já se mostrava cinco vezes maior no Brasil. Estudos recentes indicam que, em São Paulo, donas de casa, profissionais autônomos e pessoas que usam o transporte público são as maiores vítimas da pandemia, enquanto empregadores, ou seja, empresários, tem chance quase nula de contaminação.
Como anarquistas que combateram a epidemia de cólera na Itália em 1884 afirmaram, “a verdadeira causa da cólera é a pobreza e o verdadeiro remédio para prevenir seu retorno não pode ser nada menos que a revolução social”. Com apenas alguns ajustes, podemos trazer essa mesma lógica para nossa realidade no século XXI. Esses abismos entre as duas realidades, a do Brasil que alimenta 20% do planeta, em oposição ao Brasil que não garante recursos básicos, como água e esgoto, a quase 50% da sua população, provam que o problema não é uma escassez de recursos, mas a concentração de toda terra, dinheiro, infraestrutura e poder nas mãos de cada vez menos pessoas. O que mais impediria que uma população viva bem e se alimente da terra onde vivem? O problema do capitalismo é a distribuição – e a causa é a própria lógica da sua economia e da política.
Todos esses mecanismos que nos impedem de nos cuidar e promover as condições de vida e bem-estar para todas as pessoas estão evidentes. Se a pandemia da Covid-19 nos mostra algo, é que o capitalismo é cheio de funis pelos quais nem todas as pessoas podem passar para ter acesso a recursos. Uma crise que ameaça a saúde de todas as pessoas em todos os continentes, expondo mais pobres e mais vulneráveis a mortes evitáveis, mostra que esse sistema econômico não foi construído para acolher a todos ao mesmo tempo. Nesse sentido, a frase de Bakunin se torna ainda mais verdadeira, uma vez que minha saúde depende inteiramente da saúde de todas as outras pessoas, em todos os lugares do planeta. Anarquistas e demais radicais sempre anunciaram que a liberdade deve ser para todas, ou não será para ninguém. A pandemia confirmou que, sem liberdade, sem igualdade e sem autonomia para cooperar e nos apoiar mutuamente, uma pessoa doente é um risco para a saúde de todos. Ou destruímos essas linhas de exclusão, ou estaremos todas em risco.
III. A imagem do futuro – populismo nacionalista ou revolução social?
“Os políticos profissionais, vendo que estão perdendo terreno, porque o Estado vacila com o Capitalismo, tornam-se bandidos profissionais para continuar nos mesmos postos do poder e do assalto ao erário publico. Surgem as expedições primitivas. É o fascismo.”
–Maria Lacerda de Moura, “Fascismo: Filho Dileto da Igreja e do Capital,” 1934
As revoltas de 2013 sacudiram a frágil estabilidade construída pelo governo do PT mostrando que a revolta popular não poderia ser pacificada com a conciliação de classes. A democracia não representa ninguém nem nada além dos interesses das mesmas elites, seja em qual governo for e, quando a população encontra os limites democráticos para atender às suas necessidades e ter suas vozes ouvidas, as ruas em chamas se tornam seu principal canal de expressão.
Os movimentos de luta pela gratuidade do transporte, como o MPL (Movimento Passe Livre), foram criados na tradição dos movimentos autônomos que surgiram na virada do século e sua atuação constante por mais de uma década foi fundamental para a revolta que deflagaram em 2013. Aquela foi uma revolta que fugiu de qualquer controle, seja por parte próprios movimentos ou por partidos e organizações tradicionais. Mas quando esses grupos autônomos e anticapitalistas perderam capacidade mobilização diante da repressão ainda sob o governo do PT, a direita soube contornar a situação e ganhar projeção em manifestações de rua e na internet.
No fim de 2014, o PT venceu sua quarta eleição seguida, a segunda de Dilma Rousseff. Derrotado, o candidato do PSDB, segundo maior partido do país, convocou um dos primeiros protestos pelo “Fora Dilma” e “em defesa da Democracia”, ajudando a consolidar os atos de rua que se desdobrariam nos grandes protestos pelo impeachment de Dilma Rousseff nos anos seguintes. Sem um projeto eleitoral para vencer pelo voto, os partidos da oposição organizaram seus parlamentares amplamente apoiados pela mídia e pela elite empresarial conseguem aprovar, em 2016, um impeachment que deu fim aos 13 anos de governos petista. Assumia o cargo o Michel Temer, do PMDB (hoje MDB).
O governo de Temer seguiu sua agenda conservadora e acentuou o projeto neoliberal que já estava em curso. No caminho também encontrou muita resistência popular: prédios ocupados contra a extinção do Ministério da Cultura, ocupações de mais de mil escolas e cem universidades, além de manifestações e confrontos violentos em Brasília contra o congelamento de gastos para saúde e educação em 2016, chamado para greve geral em 2017, além de uma grande manifestação que tomou o centro da capital do país que terminou com 2 ministérios incendiados e vários outros de depredados. Episódios importantes de luta e resistência que fizeram o governo recuar, mas que não comprometeram o crescimento da direita nas ruas.
Às vésperas da eleição presidencial de 2018, protestos da campanha #EleNão, convocada principalmente por movimentos de mulheres contra Bolsonaro, mostrou que milhares de pessoas ainda estavam dispostas manifestar nas ruas, mas incapazes de radicalizar suas ações e pautas como 2013 ou de comprometer a imagem e a vitória de Bolsonaro nas urnas.
Ou seja, não foram apenas os movimentos autônomos os que ganharam fôlego: reacionários também aprenderam como recrutar cada vez mais pessoas nas ruas. E como a grande esquerda fugiu da revolta popular deflagrada em 2013 e do seu potencial pela radicalização para seguir perseguindo cargos e seu projeto de gestão estatal, o resultado foi que a direita soube aproveitar do descontentamento para se apresentar como uma solução eleitoral para a falência do próprio sistema democrático. Bolsonaro venceu a eleição presidencial em 2018 porque a compreendeu melhor do que grande parte da esquerda que o modelo da democracia representativa está desgastado. O combustível do fascismo é, ao mesmo tempo, o sequestro e a reação contrárias à agitação e às revoltas populares.
O maior dos populistas ou só mais um autoritário?
Bolsonaro venceu o candidato petista com 55% dos votos no segundo turno. Mas no primeiro, a polarização esmagou o PSDB, o maior rival do PT e principal partido da direita neoliberal brasileira desde a redemocratização. O partido que governou por dois mandatos seguidos antes do PT ficou com míseros 4% dos votos na eleição de 2018. Os efeitos da polarização e radicalização promovida pelos movimentos da direita estavam impondo profundas mudanças no cenário político no país, colocando a personalidade Bolsonaro no lugar de um partido inteiro como o polo oposto ao PT.
O pior dos efeitos do bolsonarismo ainda estavam por vir. Como avisou o italiano Malatesta, demonstrou o espanhol Durrutie confirmou a brasileira Maria Lacerda de Moura, toda elite e todo governo conserva o germe do fascismo como um recurso sempre ao seu alcance para conter ou prevenir com mão de ferro os avanços da classe trabalhadora. Em momentos de crise econômica e política, personalidades e programas ao estilo fascista são capazes de seduzir as elites e o eleitorado com a promessa de saída. A nova onda populista que vemos em todo o mundo em nossa década compartilha dessa estratégia. Mesmo não sendo – ou não tendo a capacidade de ser – fascistas, políticos como Bolsonaro mobilizam emoções fascistas canalizando o ressentimento das classes médias e o desejo de retomada do controle pelas elites conservadoras contra as minorias e seus direitos conquistados. Aliás, estudos apontam que células e sites neonazistas aumentaram consideravelmente desde a eleição de Bolsonaro. Quanto mais extremo, ofensivo, racista e sexista soavam, mais suas bases se engajavam em suas campanhas. Nesse contexto, o uso da internet foi fundamental como ferramenta de aprofundamento desses sentimentos polarizados entre uma esquerda reduzida ao embate entre PT de Lula contra Bolsonaro e os movimentos conservadores, cristãos neopentecostais e neoliberais que o orbitavam, mesmo sem total harmonia entre si. Em maio, fascistas do grupo “300 Pelo Brasil”, acamparam em Brasília e marcharam até o STF com tochas e estética explicitamente inspirado nas marchas “Unite the Right”, de Charlottesville, nos EUA em 2017.
Quanto à forma de fazer campanha e tirar o melhor das suas condições, Bolsonaro inovou e venceu sem o que antes era considerado fundamental: tempo de propaganda na TV, um partido grande e conhecido, boas alianças em cada região e muito dinheiro para campanha. O uso da internet, robôs e aplicativos de mensagem compensou a falta de grandes orçamentos e tempo de TV, mobilizando informações falsas contra adversários e projetando sua imagem de rebelde outsider. A campanha de Bolsonaro custou 20 vezes menos que a do petista Fernando Haddad, segundo o TSE. Sua imagem cresceu e foi muito maior que o seu partido, ao qual que se filiou apenas alguns meses antes da eleição. O ex-capitão do Exército passou 27 anos e criou apenas 2 projetos de lei e nunca se candidatou para algum cargo do executivo local, seja prefeito ou governador. Nesses quesitos, surpreendeu e se saiu muito melhor do que seus contemporâneos Erdoğan, Modi, Orbán e Duterte. Além disso, podemos dizer que fez muito mais com muito menos do que Trump com sua longa carreira na TV, sua fortuna gasta em campanha eleitoral e a estrutura do gigante Partido Republicano à sua disposição.
Um ano após ser eleito, Bolsonaro foi expelido de seu partido e até hoje é único presidente sem partido definido na história do Brasil. Ao se eleger com o uso massivo da internet, Bolsonaro seguiu governando usando a internet como palco, sendo também o primeiro presidente a fazer pronunciamentos através de lives semanais no Facebook. Assim como Trump, manteve o tom bélico de quem estava em eterna campanha eleitoral mesmo após a vitória para seguir anunciando seu projeto de gestão pela destruição.
Mas nem tudo se resume à internet, televisão e uso de robôs em mídias sociais. A origem e a trajetória política de Bolsonaro já tem 3 décadas e toda sua família possui laços profundos com as milícias que controlam parte do crime organizado no Rio de Janeiro. Seus três filhos, todos com carreiras como parlamentares, empregaram milicianos e seus parentes em seus gabinetes, como o assassino Adriano da Nóbrega que foi condecorado por Flávio Bolsonaro, e seus colegas de milícia presos acusados de assassinar a vereadora Marielle Franco – sendo um deles, aliás, vizinho de condomínio de Jair Bolsonaro.
Muito presentes no estado do Rio de Janeiro, as milícias são grupos paramilitares compostos por policiais, ex-policiais, bombeiros, agentes de segurança, que tomam o lugar das facções criminosas e passam a vender serviços de segurança para moradores e comerciantes, monopolizam o transporte clandestino, acesso à imóveis, internet, eletricidade e outros recursos. Suas origens estão nos grupos de extermínio surgidos na década de 1960 com a ditadura militar brasileira para atuar como matadores de aluguel. Com a reabertura política nos anos 1980, o imenso poder desses grupos já dominava vários setores, consolidados pelo medo e pelo terror e, na década seguinte, elegeram diversos vereadores, deputados e prefeitos em várias cidades do Rio. Sua relação com o Estado não é totalmente de confronto ou apenas atuar “onde o Estado não chega”, mas uma simbiose corrupta e assassina do crime organizado com o Estado. Nesse contexto, os 14 anos de governos do PT não se comparam a 50 anos de atuação desses grupos que ajudaram à família Bolsonaro a conquistar cargos como parlamentares e Jair Bolsonaro à cadeira de presidente.
Combinando doutrinas militares distorcidas, obscurantismo aliado a agenda ultra neoliberal e estratégias de campanha importadas de Steve Bannon e seus comparsas, Bolsonaro trouxe uma nova forma de governar para destruir, rebaixando a democracia brasileira a níveis semelhantes aos de 1964 – com direito a secretário de Cultura citando Joseph Goebbels em pronunciamento de TV, dentre várias outras alusões ao nazismo. Por todos esses “méritos”, afirmamos que Bolsonaro é um pário duro na disputa para campeão do populismo global, e o Brasil, o maior candidato a novo epicentro desse vírus letal e seu culto à morte.
“E daí?”
Não surpreende um presidente que defende a ditadura militar, tortura,grupos de extermínios e possui relações familiares íntimas com as milícias trate com total descaso uma crise sanitária que mata centenas de milhares. Quando a pandemia finalmente deu as caras no Brasil, Jair Bolsonaro seguiu um roteiro idêntico ao de seu mestre Donald Trump: primeiro subestimou o poder da doença e contrariou cientistas e instituições de saúde inúmeras vezes, depois foi contra o fechamento do comércio e o isolamento social, se negou a trabalhar junto e liberar verbas para governos e prefeituras para conter a doença. Quando questionado sobre o número de mortes, chocou a opinião publica com respostas como “E daí?” e “Não sou coveiro”. No momento em que a gravidade da pandemia era inegável, tentou tomar a frente com soluções como o uso da hidroxicloroquina como remédio milagroso, da mesma forma que seu ídolo nos EUA. Além disso, seu governo propôs um auxílio de R$200,00 mensais para trabalhadores desempregados ou impedidos de trabalhar informalmente no período de isolamento, e quando parlamentares de esquerda aprovaram uma nova proposta de R$600,00, Bolsonaro tentou levar o crédito pela medida e conquistou uma popularidade recorde entre grupos e regiões mais pobres do país. Em agosto, com 3,5 milhões de infectados, Bolsonaro segue compartilhando notícias falsas alegando que “a maioria da população é imune ao coronavírus” e, ao comentar os mais de 100 mil mortos pela doença, disse: “vamos tocar a vida”.
Se em outras décadas, estadistas enfrentando uma pandemia despejariam discursos vazios e pacificadores, dizendo que “a segurança da população é prioridade absoluta”, hoje vemos nos líderes populistas extrema-direita um orgulho em discursar com uma chamada “autenticidade” grosseira, uma estupidez “sem filtros” e “sem demagogia”. Líderes como Bolsonaro e Trump rompem com o decoro que se espera de líderes nos gabinetes ou na mídia, seja assumindo abertamente sua ignorância quanto a campos específicos da gestão econômica (“não sou economista!”) ou proferindo ofensas racistas, misóginas e classistas para tornar ainda mais fiel sua base radicalizada. Encarnar esse ar de “novidade”, de “antissistema” e de “autenticidade”, é se aventurar onde nem as maiores figuras políticas da esquerda ou da direita costumam ir.
E assim, entre ameaças de mandar tropas ao Supremo Tribunal, declarações sensacionalista e enquanto o mundo organizava fechamentos forçados, leis marciais e medidas extremas contra a pandemia, no Brasil o governo federal organizou sua própria versão de extremismo permitindo a contaminação e a morte de maneira e proporções genocidas. Seu projeto não é apenas negar a ciência, é usar conhecimentos científicos e de gestão para promover eugenia e genocídio direcionados. Ao aceitar que 70% da população “inevitavelmente” contrairá a Covid-19, Bolsonaro e seu governo assumem o risco de deixar morrer quase 2 milhões de pessoas. Como já mostramos, esses números se concentrarão em quem já está em risco por uma questão de classe, idade, gênero, etnia e localidade.
Os movimento por justiça e transformação social precisam ter essa política de morte em mente e retomar o protagonismo quanto ao que é de fato ser rebelde, o que é enfrentar o sistema e compartilhar ferramentas para luta e solidariedade que foram apropriadas e distorcidas por nossos inimigos. As bases populistas estão questionando o que ditam instituições científicas ou de mídia que, na virada do século, apenas anticapitalistas ousavam questionar – quando ainda não era possível ver isso sendo usado pela direita organizada dentro e fora do aparelho estatal. O slogan “Odeia a mídia? Seja a mídia”, criado em meio aos movimentos antiglobalização, foi desfigurado pela sua versão direitista: descreditar fatos verificáveis e espalhar notícias falsas ou “fatos alternativos” para alcançar interesses políticos. Desafiar o monopólio da ciência nas mãos de conglomerados farmacêuticos virou trocar a popularização do acesso ao conhecimento científico por um obscurantismo que coloca vidas em risco. Subverter as instituições políticas deixou de ser um horizonte para a política de base, solidária e autogerida para dar lugar à perspectiva de que uma figura carismática pode, sozinha, se sobrepor aos 3 poderes da democracia para instaurar uma forma de governo baseado em boatos e ainda mais autoritarismo.
A imagem de um futuro para além da democracia capitalista deve ser a imagem da revolução social e do fim das classes sociais, implicando em um enfrentamento permanente de todas hierarquias, não a de figuras como Trump, Bolsonaro, Orbán destruindo a frágil estrutura garantista da democracia, sem negá-las, para implementar um estado ainda mais brutal, violento e desigual – uma democracia securitária se ajoelhando em nossos pescoços para sempre, enquanto lutamos para respirar.
IV. Solidariedade e Ataque na era da COVID-1984
“…a recomposição estatista progressista foi um passo atrás. Um retrocesso. Para aqueles que postam na emancipação coletiva, o ponto de referência deve ser sempre o grau mais elevado alcançado pela luta social, e nunca aquilo que é possível conseguir. O possível é sempre o Estado, o partido, as instituições existentes. Mas a emancipação não pode deter-se aí.”
–Raul Zibechi e Decio Machado, Os Limites do Progressismo
“A história se esquece dos moderados”
–Andrew Bird
Desde as eleições em 2018, as pessoas e movimentos sociais se perguntam qual seria a forma de uma resistência radical ao governo de Jair Bolsonaro. Como resistir a um inimigo que parece absorver qualquer oposição e transformar toda polêmica em combustível para sua agenda e toda oposição em pretexto para mais repressão? E como apresentar uma oposição que não seja tragada por uma versão pacificadora, conciliadora e sem radicalidade por uma esquerda que se acostumou e se identifica com a gestão estatal e vê na revolta popular um risco à ordem da qual também fazem parte? Alguns episódios mostraram que muitas pessoas estão dispostas a dar o primeiro passo. Em 2019, antifascistas interromperam um ato e entraram em confronto com grupos comemorando aniversário do golpe militar de 1964.
Durante os primeiros meses da pandemia, as melhores repostas foram sendo dadas na prática cotidiana por movimentos sociais, antifascistas etorcidas organizadas encarando e atrapalhando atos pró-governo nas ruas; por entregadores e entregadoras organizando greves inéditas em nível nacional, assim como por moradores de favelas e ocupações em todo o país organizando a solidariedade. São esses exemplos de ação direta por solidariedade entre pessoas pobres e excluídas, e também os enfrentamentos à ordem e seus defensores que gostamos de registrar e celebrar. Tais lutas não fizeram o “possível” enunciado por diversos líderes estatais, que consistia em fazer a administração catastrófica da catástrofe, não esperaram, lidaram com a contingência de maneira a não se deixar paralisar – é nisso que apostamos!
Retomar as Ruas: Antifascista e Torcidas Organizadas
“Sem a natureza hierárquica e hegemônica do Estado, que monopoliza o uso da força, da economia, ideologia oficial, informação e cultura; sem a onipresença dos aparelhos de segurança que penetram todos os aspectos da vida, da mídia ao quarto; sem a mão disciplinadora do Estado como um Deus na terra, nenhum sistema de exploração ou violência poderia sobreviver. ”
–Dilar Dirik, Radical Democracy: The First Line Against Fascism
A luta antifascista emergiu na mídia e nas pautas dos movimentos como há décadas não se via no Brasil, com ampla cobertura das ações e protestos, mas também recebendo ameaças de criminalização e repressão. Desde 2015, como citamos, a tomada das ruas pela direita aos domingos, pedindo impeachment do PT, deu lugar às campanhas para eleger Bolsonaro em 2018. Após a eleição, grupos de direita “inovaram” mais uma vez com seus “protestos à favor” do governo, organizados aos finais de semana para não atrapalhar o fluxo de veículos e mercadorias nos dias de semana e contar com mais fora do horário de trabalho – o oposto dos atos que os movimentos anticapitalistas organizam com intuito de paralisar o fluxo urbano.
No entanto, esse avanço da direita na tomada das ruas não foi apenas uma conquista própria, mas algo construído com a conivência e o apoio direto das polícias e agentes de segurança. Documentos internos da Polícia Militar vazados à imprensa comprovam o óbvio: o comando da polícia trata manifestações pró-governo como atos inofensivos e festivos, recebendo elogios mesmo quando desrespeitam normas de isolamento e o uso de máscaras. Mesmo sendo inconstitucional discriminar manifestações políticas com base ideológica, ligando certas organizações e até partidos políticos a crimes de vandalismo, forças policiais de elite sequer acompanhavam os atos da direita, enquanto protestos de oposição eram vistos como uma “ameaça à ordem” e fortemente reprimidos. É claro que, novamente, vemos as linhas de exclusão que direciona repressão para manifestações populares de esquerda, periféricas, de maioria negra e pobre, enquanto policiais escoltam, protegem e tiram fotos com apoiadores do governo, em sua maioria brancos, dos bairros nobres, fazendo carreatas em veículos de luxo. Isso demonstra como o Estado influencia e tenta controlar quais ações políticas vão ganhar espaço nas ruas e quais serão sempre alvo da repressão.
Desafiando essa lógica, torcidas e trabalhadores e trabalhadoras precarizadas organizaram diversos atos públicos nas ruas em 2020. Nos dias 3 e 17 de maio, antifascistas em Porto Alegre interromperam protestos bolsonaristas que pediam a volta da ditadura militar aos cantos de “Recua, fascista”. Foram alguns dos primeiros atos do ano – e após muitos meses – a desafiar hegemonia bolsonarista nas ruas.
Como em outros lugares do mundo, a mídia debateu sobre a “necessidade” de se reunir nos espaços públicos para confrontar manifestações em apoio a Bolsonaro e pela reabertura do comércio. Se os patrões e a mídia não veem problema em nos fazer aglomerar no ônibus lotados, nas filas dos bandos esperando nossos benefícios, nos empregos precários e serviços de entrega que crescem enquanto sofremos com o vírus e a falta de recursos, então julgamos necessário nos reunir para bloquear os defensores de um sistema econômico assassino, o fluxo de mão de obra para produção e de mercadorias para o consumo.
Na cidade de São Paulo, cerca de 70 torcedores do Corinthians organizaram um pequeno ato dia 9 de maio, no mesmo horário e local que um ato pró-governo. A ação barrou o protesto bolsonarista chamou atenção nas mídias sociais, junto com as imagens de Porto Alegre no dia 17, e serviu para convocar mais pessoas para a rua. No fim do mês, torcedores de diferentes times de futebol ocuparam as ruas em São Paulo e frustrar protestos de apoiadores do presidente no dia 31, quando os atos ganharam uma escala nacional. Torcedores da Gaviões da Fiel, uma das maiores torcidas do país, com uma longa ação política desde os anos de chumbo da Ditadura, convocaram as manifestações que contaram com grupos de torcidas rivais, como Palmeiras, São Paulo e Santos. O momento de união das torcidas e outros grupos antifascistas reuniu uma multidão quase dez vezes maiordo que o lado bolsonarista. A polícia tentou manter linhas de isolamento, mas um confronto ocorreu entre antifas responderam a provocações de manifestantes carregando bandeiras do Pravy Sektor, partido neonazistas ucraniano, e bandeiras dos EUA. A polícia interveio, direcionando seu ataque aos antifascistas, e protegendo neonazistas na Av. Paulista se tornou o palco de um grande confronto. Antifascistas resistiram e ergueram barricadas bloqueando as vias por um bom tempo.
As cenas repercutiram em todo o país, especialmente uma foto que registra um trabalhador de entregas por aplicativo atirando pedras contra a polícia. Sob o slogan “Somos Democracia”, entoado por diversas torcidas organizadas, uma imagem de oposição combativa e organizada era apresentada com os protestos contra o governo e o racismo desde o início de maio. A onda de revoltas que tomou os EUA após o assassinato de George Floyd dia 25 de maio nos EUA impulsionou ainda mais os movimentos que vinham tomando de volta as ruas no Brasil. As barricadas do dia 31 mostram que os sentimentos de repúdio ao racismo, a governos que flertam com o fascismo e a revolta contra suas forças repressivas são basicamente os mesmos de norte a sul do globo.
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Ao todo, foram mais de 15 cidades em protesto no dia 31 de maio. No Rio de Janeiro, vimos forte presença de anarquistas e antifascistas aparecendo para confrontar um ato nacionalista pró-Bolsonaro em Copacabana. Houve confronto físico entre antifascistas e nacionalistas. Em Belo Horizonte os atos também começaram com pequenas chamados e se tornaram grandes manifestações. Em muitos casos, como no dia 31 de maio, foi possível bloquear, atrasar e impedir carreatas em apoio a Bolsonaro e pela reabertura do comércio. A torcida Resistência Alvinegra, fez um primeiro ato pequeno na Praça do Papa, com um vídeo onde leram um manifesto pela democracia e contra a agenda fascista de Bolsonaro e seus apoiadores. O chamado surtiu efeito e os atos semanais saltaram de uma dúzia para milhares de pessoas dias 31 de maio e 7 de junho, com diversas torcidas e movimentos sociais marchando para barrar as carreatas da direita, levando bandeiras e cantos antifascistas, homenagens a George Floyd e também João Vitor e Rodrigo Ciqueira, assassinados pelas polícias cariocas, além da vereadora e militante Marielle Franco, assassinada em 2018 por milicianos
Nas semanas seguintes, mais cidades foram se juntando aos protestos antifascistas e contra o racismo. Em Salvador, a onda de protestos pelo Brasil e nos EUA levou grupos como Reação Antifascista Salvador, torcidas organizadas, sindicatos e quilombos a organizar um grande ato dia 7 de junho. Em Curitiba, uma manifestação com presença massiva de antifascistas marchou pelas ruas do centro da cidade no dia 1 de junho, que queimou a gigantesca bandeira nacional hasteada em frente ao palácio do governo e entrou em confronto com a polícia.
Mesmo com todos os seus problemas e conflitos internos, as torcidas organizadas possuem uma enorme capacidade de mobilização e diálogo com diversos setores da sociedade. Basta olhar o exemplo recente das torcidas organizadas Chilenas se juntando às linhas de frente em defesa dos protestos de 2019. Em 2013, a ocupação em defesa do Parque Gezi em Istambul, Turquia, também contou com um tremendo papel das torcidas que deixaram as rivalidades internas de lado para defender o parque e a ocupação da Praça Taksim das ofensivas policiais. Como aponta Mark Bray no livro Manual Antifa, a cultura e organização antifascista ganhou popularidade nas últimas décadas entre torcidas de futebol estadunidenses que organizadas por imigrantes que trabalhavam para combater a homofobia e transfobia. E na Europa, o autor considera que “alguns dos mais ferozes conflitos antifascistas aconteceram no contexto do futebol”. Essa tradição remonta à década de 1970, quanto grupos fascistas usavam torcidas e os jogos como espaço para recrutar novos membros e antifascistas modernos logo agiram para combater e impedir esse processo. É importante notar essa tradição retomando fôlego também no Brasil, onde o futebol e a relação das torcidas com os movimentos sociais é antiga e forte.
Infelizmente, vimos um refluxo nos atos, especialmente em São Paulo, a cidade com as maiores torcidas envolvidas nos protestos nacionais. Após os confrontos do dia 31 de maio, o governo do estado e o comando da PM tentaram mediar entre os movimentos antifascistas e os organizadores de atos pró-governos para que não organizassem protestos no mesmo horário na Av. Paulista novamente. Movimentos como o Povo Sem Medo, ligados ao candidato a prefeito Guilherme Boulos, a rede Somos Democracia e outros movimentos negros decidiram respeitar a decisão do Tribunal de Justiça que proibia os atos acontecerem juntos no dia 7 de junho. O sentido de organizar um ato para barrar fascistas que não poderia de fato barrar fascistas acabou sendo perdido.
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A repressão direta ou a censura velada não demorou a atingir outros estados. Partidas futebol estavam acontecendo sem a presença de público, porém, torcidas organizadas podiam enfeitar o estádio com suas bandeiras. Em Belo Horizonte, no entanto, a torcida Resistência Alvinegra foi proibida pela Confederação Brasileira de Futebol (CBF) de estender sua bandeira que continha a imagem de Marielle Franco e a palavra “Antifa”. A bandeira era a mesma que esteve presente nos protestos de rua nos meses anteriores. A justificativa da entidade demonstra que em seu regulamento, a palavra “antifa” está no mesmo nível que expressões racistas e xenófobas.
Está cada vez mais claro o receio das autoridades em permitir o crescimento de expressões e movimentos combativos como o antifascismo. Viemos agora de uma onde de levantes na América Latina, com Equador, Colômbia e Chile, se levantando contra os custos de vida e condições no neoliberalismo. Parte da esquerda e muitos movimentos anticapitalistas viram inspiração naquela luta, se perguntando levantes começariam por aqui também. O próprio Jair Bolsonaro expressou em 2019que o governo está atento à onda de protestos nos países vizinhos, e em2020 mostrou sua preocupação quanto a radicalização das ações nas ruas e seu medo do Brasil “virar o Chile” em resposta aos efeitos da crise do coronavírus. No entanto, as manobras do governo mostram um desejo de reproduzir o modelo neoliberal chileno, dando total liberdade para que o Capital aprofunde a exploração da mão de obra e do meio ambiente, enquanto o Estado corta e reduz serviços sociais para a população. E de fato, tanto a crise causada pela pandemia quanto as mortes causadas pela polícia geram protestos e confrontos, como no dia 15 de junho após a morte do jovem Guilherme, assassinado por policiais que trabalhavam como seguranças privados.
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Como efeito, Bolsonaro e seus parlamentares aliados buscaram imitar Donald Trump e fazer declarações considerando antifascistas uma “ameaça terrorista doméstica”. Seu objetivo pode até não ser atingido usando a lei para criminalizar o antifascismo, mas sabemos bem quais lições a história nos mostra: Bolsonaro vai estimular os ânimos de suas bases dispostas a praticar atos de violência nas ruas contra minorias e dissidentes com a conivência da polícia. Grupos de extrema-direita radicalizados já fazem seu trabalho sujo legitimado pelo discurso do presidente: invadindo hospitais para tentar “provar” que não estão cheios de pacientes, como Bolsonaro insinuou em um pronunciamento, violando caixões para comprovar boatos de que não existem pessoas mortas, mas apenas pedras dentro deles para simular funerais, agredindo profissionais da saúde em hospitais ou organizando protestos por mais recursos para atender pacientes. Vimos grupos como o “300 Pelo Brasil”, acampando em Brasília e marchando até o STF com tochas e estética explicitamente inspirado nas marchas “Unite the Right”, de Charlottesville, nos EUA em 2017. Mesmo tento seu movimento reprimido e alguns dos seus membros presos, tanto os “300” quanto outros grupos menos organizados comprovam que o legado do governo de Jair Bolsonaro, além dos estragos de dentro das instituições estatais, deixará um legado de muito fascismo, racismo e ódio nas ruas.
Mas em todos os cantos das Américas, o recado está sendo dado: não vamos tolerar os avanços do fascismo e do populismo, nem mais mortes pelas mãos da polícia (a instituição mais fascista que caminha sobre esses solos) e as ruas, não pertencem àqueles que fazem “protestos à favor de governos” e fazem o trabalho sujo de gangues que a polícia (ainda) não é capaz de fazer diante das câmeras. Seguiremos tomando as ruas com as bases, com as torcidas — mesmo quando partidos e movimentos tradicionais sequer esboçam qualquer coragem de se juntar a nós.
Breque dos App
“Ninguém no mundo, ninguém na história, conseguiu sua liberdade apelando para o senso moral de seus opressores.”
-Assata Shakur
Durante a pandemia, vários setores iniciaram greves para barrar a perda de ainda mais direitos e conseguir melhores condições de trabalho. Setores fundamentais como metroviários e os correios fizeram greves vitoriosas quando se viram mantendo serviços considerados essenciais enquanto trabalhavam mais tempo, mais pesado e sem equipamentos ou condições para preservar sua saúde. Associações de inquilinos também organizaram movimentos pela anistia e greve de aluguéis, com um pouco menos de repercussão na mídia, mas ainda assim realizando um trabalho fundamental. Mas um novo grupo surgiu chamando a atenção pela dimensão, pela força e pela criatividade em organizar quem estava isolado e desafiar um dos novos negócios que mais cresceu durante a pandemia: os Entregadores Antifascistas
Profissionais trabalhando com suas motocicletas ou bicicletas para aplicativos de entrega de comida e produtos diversos sentiram um aumento significativo na demanda por seus serviços. Os pedidos por produtos entregues em domicílio foram decretados como essenciais para que milhões de pessoas pudessem ficar em casa. Enquanto isso, quem não podia ficar em casa, como os 9 milhões de novos desempregados no primeiro semestre de 2020, buscava seu sustendo no mercado informal – que já emprega mais de 40% da força de trabalho brasileira. As empresas internacionais como a Uber e Rappi, e a brasileira Ifood cresceram até 50% absorvendo serviços e nova força de trabalho recém-dispensada ou demitida das empresas que paralisaram ou faliram devido à pandemia, elevando a taxa de desemprego à 13,3% no país. No entanto, mais pedidos não significa mais dinheiro entrando para quem trabalha. Além de receber menos, entregadores estiveram sujeitos a mais riscos para a saúde.
Se opondo a essa lógica oportunista das novas empresas digitais, que invisibilizam as relações de trabalho tornadas individuais, surgiu o grupo Entregadores Antifascistas em São Paulo. Galo, um de seus fundadores gravou um vídeo desabafando sua frustração sozinho, no dia do seu aniversário, em março de 2020 após ser bloqueado pelo aplicativo por não terminar uma entrega por conta de um pneu furado. O vídeo viralizou nas mídias sociais e a projeção inspirou o Galo a criar um abaixo-assinado com mais de 600 mil assinaturas para exigir que os motoboys tivessem direito a refeição, itens de proteção e outros direitos básicos negados pelas empresas que tratam os motoboys como “empreendedores” e “parceiros”, não como funcionários. Quando outros se juntaram à causa, criaram o grupo Entregadores Antifascistas, uma forma de organização sindical ainda informal e movimento que também busca ser uma cooperativa autônoma. Dezenas deles participaram dos atos antifascistas em São Paulo no dia 7 de junho, onde gravaram maisum vídeo manifesto que circulou na imprensa e na internet, convocando mais entregadores e entregadoras a se organizarem com o movimento.
Logo após participar dos atos das torcidas e movimentos antifascistas, convocaram o “Breque dos App” para o dia 1 de julho, uma greve nacional de entregadores e entregadoras que atingiu 13 estados na luta por melhores salários, direitos e condições de trabalho. Para contornar as medidas punitivas que as empresas aplicavam contra indivíduos ou pequenos grupos que protestavam ou paralisavam suas atividades, a solução foi fazer um movimento ainda maior para pressionar, chamar atenção para a causa e a situação da categoria. Bloquearam avenidas com centezas de motocicletas, mas também a porta da sede de várias empresas de entrega. Um segundo grande dia de greve foi realizado dia 24 de julho.
O exemplo de luta dos Entregadores Antifascistas nos lembra que, mesmo com a “uberização” das relações de trabalho que aprofundam a precariedade e a informalidade que já dominam países como o Brasil, é uma ilusão acreditar no discurso de que quem vende sua força de trabalho tem “autonomia”, é “empreendedor” ou está em pé de igualdade para se relacionar com empresas como “parceiros”. Nas palavras do próprio Galo: “Não somos empreendedores, somos força de trabalho!”. Por trás dos aplicativos e seus algoritmos existem proprietários com o controle total sobre a ferramenta, o serviço e o pagamento de quem mais trabalha. Ainda existe a velha divisão entre empregadoras e empregados, entre quem manda e quem obedece, quem trabalha por pagamentos mínimos e quem lucra fortunas. A “modernização” trazida pelas empresas e sua “GIG Economy” não passa de um “feudalismo digital” que se aproveita da falta de legislação para acabar com salários fixos, direitos, seguridade, aposentadorias e só pagar a motoristas, entregadoras e outros profissionais apenas por kilômetro rodado ou entrega feita, sem qualquer regra fixa – como na transição para a economia capitalista. Somente uma luta organizada de baixo para reunir indivíduos dispersos e isolados pela informalidade, criando uma nova linguagem de ação capaz de atacar e causar prejuízos aos patrões poderá chegar a alguma mudança, compartilhando experiência de luta radical, consciência de classe rumo a transformações sociais profundas.
Ações Solidárias e Apoio Mútuo: Nós Cuidamos de Nós!
Além dos impactos direto na saúde e na vida de milhões de pessoas, as previsões para um futuro próximo já apontam que a pandemia vai colocar mais até 66 milhões de pessoas na fome em todo mundo. No Brasil, além dos já mencionados 9 milhões de empregos perdidos, um dos primeiros problemas as serem enfrentados com a paralisação parcial da economia com as pessoas ficando em casa é a fome. Claro que a gestão Bolsonaro contribuiu para esse quadro: em seu primeiro ato como presidente, extinguiu órgãos responsáveis pelo combate a fome, como o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea). No ano seguinte, afirmou a membros da imprensa internacional que “não existe fome do Brasil”.
Junto da crise sanitária e econômica, houve um aumento de até 40% no preço dos alimentos básicos. Em São Paulo, por exemplo, produtores viram uma queda de até 80% na venda de verduras e legumes para os bares e restaurantes da capital nos primeiros meses da pandemia. Até de 70% de algumas produções foi jogada no lixo por “não ter como distribuir”, enquanto milhares de pessoas nas cidades não sabiam como alimentar suas famílias. A lógica de mercado leva produtores a jogar fora alimentos antes de dividi-los com quem tem fome e torna ineficiente a distribuição de recursos em momentos de crise. Se não há relações de compra e venda e um retorno em lucro, não é útil levar alimento a quem mais precisa.
Em muitos casos, empresas tentam fazer publicidade disfarçada de caridade, doando produtos alimentícios industrializados e processados para colocar sua marca em reportagens de TV. Com imagens produzidas por elas mesmas, usaram do jornalismo corporativo para ocupar minutos milionários do horário nobre como publicidade gratuita para atribuir uma imagem de “solidariedade” a suas marcas.
Para mostrar que é possível nos organizar com uma outra lógica, no período de março a julho, o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) organizou a doação de 2.300 toneladas de alimentos para comunidades em todo o país. A agricultura familiar é responsáveis por até 80% da produção de frutas e60% das verduras consumidas pela população. O MST usa o mesmo modelo para produzir e vender alimentos abaixo do preço de mercado e ainda doar arroz, feijão, pinhão, erva-mate, fubá, farinha de milho, frutas e verduras em escala nacional durante a pandemia.1
Mas não são apenas exemplos grandiosos em escala e que fizeram a diferença. Diversas iniciativas chamaram a atenção por desenvolver princípios anarquistas de apoio mútuo nas periferias, em ocupações urbanas e nas favelas, distribuindo alimentos e até fazendo higienização comunitária. Uma delas merece atenção especial pela dimensão e amplitude. Na favela Paraisópolis, uma das maiores de São Paulo, moradoras e moradores organizaram sua própria rede de atendimento de saúde, capacitando e equipando 240 moradores em 60 bases para atuarem como socorristas em casos de emergência. Além disso, realizaram a distribuição de refeições para apoiar quem estava doente, quem ficou em casa e não pode mais trabalhar e também quem não tinha opção além de sair para ganhar seu sustento.
[[https://cdn.crimethinc.com/assets/articles/2021/02/21/2.jpg Ação solidária do MOB no Morro dos Macados, Rio de Janeiro.]
Solidariedade não é um serviço ou um “trabalho”, mas uma atividade essencial para todo movimento revolucionário ao longo da história. Pessoas educadas dentro do Capitalismo conhecem apenas a falsa escassez criada pela propriedade individual da terra. Em crises sanitárias ou econômicas, acreditam que a solução é uma competição ainda mais intensa por recursos, por dinheiro e até por saúde. Somente exemplos de ações diretas, voluntárias, solidárias e autônomas podem vencer a competição e o isolamento.
Como recordam camaradas da Federação das Organizações Sindicalistas Revolucionárias do Brasil (FOB), a Gripe Espanhola, última grande pandemia global, pode nos ensinar sobre valores anticapitalistas para a crise atual. Um século atrás, a Gripe Espanhola matou mais que os quatro anos de I Guerra Mundial e devastou as grandes cidades brasileiras, matando 35 mil pessoas, cujos corpos se amontoavam nas ruas e em valas comuns de cidades como Rio de Janeiro, então capital do país. Na mesma época, explodia a primeira grande greve geral, a Greve Geral de 1917, a Insurreição Anarquista de novembro de 1918 no Rio de Janeiro, ambas protagonizadas pelo movimento sindical anarquista que era hegemônico na época e conquistou importantes vitórias e direitos para toda a classe trabalhadora.
Nos manter saudáveis e com vida é uma tarefa ao mesmo tempo defensiva e ofensiva, como as demais formas de organização que vimos em ruas e bairros ocupados nos protestos contra o racismo e a polícia nos EUA (e nos movimentos de ocupações de praças e prédios nas últimas décadas). Precisamos de formas de cuidado que sejam solidários entre as classes oprimidas e hostis aos planos do Estado e do capital – não apenas uma muleta para a precariedade planejada e intencional de seus serviços. As torcidas organizadas já aprenderam e difundem essa lição ao promover a distribuição de cestas básicas ao mesmo tempo em que organizam protestos para barrar a extrema-direita nas ruas. Assim como o MST, que produz alimento saudável e barato enquanto enfrenta a maior concentração de terra do mundo e um dos maiores índices de violência no campo
A história confirma que momentos de luta social radical, pandemias e a ação direta por solidariedade entre pobres e excluídos não são nenhuma novidade nessas terras. Agindo em solidariedade sob uma perspectiva revolucionária, coletivos e movimentos não pretendem apenas “preencher” o vazio dos serviços Estado nem muito menos servir como uma forma de caridade. Pretendemos mostrar que novas relações e princípios podem e devem surgir para solucionar os problemas causados pela tirania capitalista e superar a lógica que causa tais problemas.
Conslusão: Rumo a um Velho Normal?
“Para nós, a política é outra coisa. São as palavras de Omama e dos xapiri que ele nos deixou. São as palavras que escutamos no tempo dos sonhos e que preferimos, pois são nossas mesmo. Os brancos não sonham tão longe quanto nós. Dormem muito, mas só sonham consigo mesmos. ”
–Davi Kopenawa Yanomami, “A queda do céu,” 2016
“Quando engenheiros me disseram que iriam usar a tecnologia para recuperar o rio Doce, perguntaram a minha opinião. Eu respondi: “A minha sugestão é muito difícil de colocar em prática. Pois teríamos de parar todas as atividades humanas que incidem sobre o corpo do rio, a cem quilômetros nas margens direita e esquerda, até que ele voltasse a ter vida”. Então um deles me disse: “Mas isso é impossível”. O mundo não pode parar. E o mundo parou.”
–Ailton Krenak, “O Amanhã Não Está à Venda,” 2020
O capitalismo não parou, mas vimos o impressionante efeito da breve desaceleração das atividades econômicas e industriais nas grandes cidades durante alguns momentos de isolamento social. Porém, não existe um “novo normal”. A normalidade não será tão “nova”, mas apenas uma reedição da velha: a corrupção, a ganância e as eternas ameaças do autoritarismo e das crises de um sistema condenado a fazer da crise sua forma de governo.
Assistimos Donald Trump perder a eleição nos Estados Unidos para um outro racista abusador que tem uma policial como vice – e até janeiro de 2021 não especulamos se Trump vai tentar usar para resistir à derrota nas urnas nas cortes ou convocando milícias para promover mais violência nas ruas. Sua derrota afeta diretamente o futuro da política externa de Bolsonaro, sempre colocada como subserviente aos interesses imperialistas estadunidenses na América Latina.
Enquanto isso escândalos envolvendo Bolsonaro não param de surgir: ogoverno desviou 7,5 milhões de reais arrecadados para produzir testes da covid-19 uma organização da esposa do presidente e o vice-líder do governo no senado foi detido pela Polícia Federal com 33 mil reais na cueca durante uma busca que investiga o desvio de 8 milhões de reais desviados da compra de equipamentos para tratar pacientes com o coronavírus. O novo normal, com vírus ou com o populismo bolsonarista, se mostra muito semelhante toda uma era de normalidade de outros governos e crises. O mesmo serve para os negócios: 33 brasileiros se tornaram novos bilionários durante e os super ricos ampliaram suas fortunas a pandemia enquanto metade da população ativa está desempregada pela primeira vez na história do país. Pessoas morrem sem atendimento ou testes enquanto corruptos vivem vida de luxo financiada com dinheiro destinado ao combate ao coronavírus.
Como aponta o anarquista Uri Gordon, precisamos considerar os efeitos das perspectivas de colapso do capitalismo sobre nossas políticas radicais. Não apenas considerar que não mais temos pela frente “um mundo de prosperidade autogerida pela classe trabalhadora”, mas um enfrentamento das consequências de permitirmos que a burguesia espalhasse a tirania do capital pelo mundo por tanto tempo. Como aponta o autor, veremos três opções possíveis: “uma nova ordem social baseada na liberdade e igualdade, diferentes ordens sociais modificadas a partir da atual, mas que mantenham a opressão e a desigualdade, ou o colapso total de qualquer ordem social. Em outras palavras, um comunismo libertário de base, um eco-autoritarismo ou a guerra civil”. O perturbador é perceber que já vemos amostras desses três mundos futuros lutando pela sua existência nesse momento e bem debaixo de nossos pés.
A história não segue uma linha reta do progresso natural das sociedades e os espectros tirânicos, que alguns acreditam terem sido deixados para trás com a modernidade, assombram como o “bacilo da peste” que Albert Camus usou para nos advertir. A ironia em sua metáfora é justamente que não livramos o mundo nem de espíritos totalitários e obscurantistas, nem de pandemias infecciosas – ambos são ameaçadores da mesma forma que séculos atrás. E tanto o espectro fascista quanto as próximas epidemias já estão a caminho, segundo especialistas, podendo ser deflagradas por vírus contidos em biomas ameaçados, como a Amazônia. O desastre que vivemos e conecta todas as pessoas no mundo hoje não é um capítulo descontinuado na história. Ele é produto da exploração capitalista e do agronegócio, da domesticação e da devastação da vida animal e vegetal, do nível cósmico ao microbiológico. As forças autoritárias que aproveitam desse momento para refinar suas táticas e tornar mais brutais suas leis, são as mesmas que já vinham emergindo nas últimas décadas, agora e cada vez mais sob a sombra do populismo nacionalista de direita que engole todos os continentes. De políticos como Trump e Bolsonaro a grupos autoritários como o Estado Islâmico e as milícias fascistas, autoritários vão tentar dividir o mundo em uma guerra civil global nacionalista.
Não devemos nos apegar apenas às semelhanças de nossos chefes de estado. As Américas compartilham muito mais do que o nome de um traficante de escravos: a história de resistência dos povos ameríndios, escravizados, mulheres e toda classe trabalhadora é muito maior e tem muito a nos ensinar nesse momento. Ao contrário de grande parte da esquerda que, pareciam mais encantados com a imaginação de um suposto “novo normal” do que atenta às desordens que já estavam em curso, acreditamos que se não usarmos nossas habilidades e nossa capacidade de organização para fortalecer laços comunitários e nossa capacidade organizativa para a luta social, podemos ter certeza que autoritários fortalecerão seus mecanismos dentro e fora dos Estados. As ações solidárias entre comunidades e de combate ao fascismo nas ruas prefiguram cenários possíveis para toda luta antiautoritária de agora e do futuro, onde o meio pelo qual buscamos um novo mundo já mostra como deve ser esse novo mundo: quem se organiza em sua vizinhança e em sua terra para tirar dela sua comida e sua saúde não cairá junto aos centros do capitalismo em colapso global; quem promove a solidariedade não precisa entrar em uma competição em torno de recursos tornados escassos pela propriedade individual; quem organiza a autodefesa não ficará a mercê de polícias, exércitos e outros capangas do Estado e dos patrões para se defender de agressores fascistas e todo tipo de opressão racista ou patriarcal que encontrarmos.
A invasão europeia em 1500 gerou diversas pandemias mortais nas Américas – muitas intencionalmente usadas como armas biológicas pelos europeus. Provavelmente, povos Incas, Guaranis e muitos outros que habitavam essa terra também se perguntavam: “quando é que tudo vai voltar ao normal?” Cinco séculos depois, constatamos que não existe retorno ao que o Capitalismo destruiu. Viveremos por paisagens sempre marcadas por todos os mundos destruídos sobre essas terras, sempre rumo a um novo cenário. Se existe algo que podemos aprender com os povos originários das Américas é não esperar pelo “retorno” do que existiu, mas enfrentar e buscar superar o que veio para tornar pior a vida nesse mundo.
Aqui, lembramos do filme “Serras da Desordem” (2016) dirigido por Andrea Tonacci, que mistura ficção e documentário para acompanhar o índio Carapirú, sobrevivente do massacre do povo Awá-Guaja praticado por pistoleiros em 1978. Capirú passou a vagar sozinho por 10 anos percorrendo 2 mil quilômetros de distância de onde fugiu. A catástrofe evocada no filme é da imagem da perda de um mundo sem que outro possa vir e substituí-lo, deslocando-se em uma inadequação e falta de entendimento permanente. Em um momento do filme conseguimos ler a manchete de um jornal da época do encontro com Carapirú que diz: “Ele dança, pinta e ri. Mas está triste”.
A pandemia era algo que muitas pessoas esperavam como uma catástrofe anunciada, quando finalmente a peste chegou não veio da forma como havíamos imaginado. Afinal, o mundo não se comporta de acordo com nossas expectativas e aqueles que anseiam verdadeiramente a revolução disso deveriam (não) saber. Ainda não conseguimos e nem sabemos lidar com esse tempo, pois algo da vida anterior se perdeu para sempre, tentamos diariamente elaborar o confronto com o imponderável, as mortes de parentes, amigos, desconhecidos e fazer o luto, continuar nos empregos, sobreviver, abraçar alguém, lidar com a destruição e a angústia. Ainda tentamos estar juntos (ainda que muitas vezes separados), absorvendo as experiências de sujeitos e coletivos nesse processo, lutando e aprendendo a lutar até que possamos enfim respirar.
“O bacilo da peste não morre, nem desaparece nunca, pode ficar dezenas de anos adormecido nos móveis, na roupa, espera pacientemente nos quartos, nos porões, nos baús, nos lenços e na papelada… viria talvez o dia em que, para desgraça e ensinamento dos homens, a peste acordaria os seus ratos e os mandaria morrer numa cidade feliz.”
–Albert Camus, A Peste
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Como qualquer um poderia prever, mesmo trabalhando para que pessoas tenham acesso à terra e pessoas no campo e na cidade tenham comida em casa, o MST segue sendo um dos principais alvos do governo federal e dos estados. Em Minas Gerais, o desalojo do assentamento Quilombo Campo Grande no dia 13 de agosto, deixou sem casa 450 famílias que ocupavam e produziam por mais de 20 anos em um terreno abandonado por seu proprietário que devia fortunas em impostos. Policiais Militares derrubaram a escola comunitária e incendiaram plantações, de forma semelhante às táticas do Estado Islâmico para expulsar agricultores de suas terras na Síria. ↩