Greve de aluguéis?

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Uma análise estratégica das greves de aluguéis ao longo da história – e agora.

No mundo todo, estão acontecendo convocações para greves de aluguéis frente às dificuldades econômicas impostas pela pandemia do COVID-19. Na última década, os valores imobiliários cresceram vertiginosamente e a gentrificação destruiu inúmeras comunidades. Os custos com moradia já eram insustentáveis muito antes de a pandemia evidenciar a questão.

Mas, como poderíamos entrar em uma greve de aluguéis contra a própria economia? Considerando as greves de aluguéis, normalmente imaginamos um modelo que tem como alvo um proprietário específico, direcionada a atender demandas próprias. De fato, essa estratégia já foi utilizada de forma efetiva em uma escala muito maior anteriormente. Em uma crise na qual um número enorme de pessoas não terá condições de pagar suas contas, quer se queira quer não, o importante é criar redes de defesa em torno daqueles que não podem pagar. Nos próximos meses, teremos de desenvolver a capacidade de confrontar todos os proprietários que venham a prejudicar ou despejar os moradores.

O texto a seguir é adaptado da versão em Espanhol da “Editorial Segadores e Col·lectiu Bauma”, publicado na Catalunha no começo desta semana. Os autores perpassam mais de um século de greves de aluguéis pelo mundo a fim de identificar o que as torna bem-sucedidas ou não para, depois, avaliar se este é um momento oportuno para uma greve de aluguéis mundial.

Esse é o momento para uma greve de aluguéis?

“O fato de que há muitas pessoas subitamente interessadas em uma greve de aluguéis (e que nunca tiveram contato com organizações ortodoxas) não é sinal de espontaneidade ou de ultra-esquerda ou mesmo de um fracasso moral em não haver participado anteriormente em organizações ortodoxas. É sinal de que a mudança das condições materiais apresentaram esta estratégia, combinando a) sobrevivência; b) o recente aumento em empréstimos. Novas condições significam novos modos de organização ao invés de bater o pé e insistir em formas antigas.”

-Joshua Clover

“Eu não posso despejar todos de uma vez!”

-Aparentemente, um proprietário buscando conselhos em um fórum online depois de receber uma carta dos 32 moradores do prédio que ele “possui” a respeito da intenção de realizar uma greve de aluguéis. 25 de março, 2020, em Houston, Texas.

Station 40, um coletivo de moradia em São Francisco já está em greve de aluguéis no momento em que publicamos este artigo. Leia a entrevista em inglês com membros do coletivo aqui.

São tempos estranhos. A primavera chegou, acompanhada pela pandemia causada pelo vírus, que avançou com velocidade alarmante e com a resposta totalitária do Estado, colocando-nos diante de uma nova situação. Enquanto a policia aproveita seus novos poderes adquiridos, inúmeras pessoas perderam seus empregos e muitas outras não fazem ideia de como irão sobreviver até o fim do mês. Nesse contexto, vozes desobedientes têm surgido e a ideia de uma greve de aluguéis têm ganhado força. Nós da Editorial Segadores e Col·lectiu Bauma quisemos investigar esse tipo de greve, revisitando alguns exemplos famosos do passado e imaginando como seria uma em tempos de coronavírus. Esperamos que essas reflexões possam ajudar a quem esteja interessado nestas articulações e em agir neste sentido. Em resposta ao confinamento – pensamento crítico e ação direta.

O que é uma greve de aluguéis e como ela funciona?

Uma greve de aluguéis é quando um grupo de inquilinos decide coletivamente parar de pagar o aluguel. Pode ser a um proprietário em comum ou inquilinos que morem no mesmo bairro. Isso pode acontecer em conjunto com outra greve, como parte de uma mobilização maior, um meio de resistência contra a gentrificação, contra condições degradantes de vida, contra a pobreza em geral ou o capitalismo.

Para que ser bem sucedida, uma greve de locatários requer três elementos:

  1. Insatisfação Compartilhada. No começo, mesmo que os vizinhos não tenham expressado suas demandas, é necessário que compartilhem da situação de uma forma mais ou menos comum: que é ultrajante ou intolerável que eles corram o risco de perder o acesso a suas casas, e que eles não confiem nos meios legais de estabelecer justiça.

  2. Divulgação. Como veremos a seguir, a maioria das greves de aluguéis foram iniciadas por um pequeno grupo de pessoas e se expandiu a partir daí. Portanto, eles precisam de meios para convocar à ação, comunicar suas demandas, requisitar apoio e solidariedade. Em muitos casos, os grevistas podem vencer com apenas um terço dos inquilinos das propriedades participando, mas a divulgação é necessária para chegar a esses números e fazer com que a ameaça de que a greve irá se espalhar seja convincente.

  3. Apoio. As pessoas que entram em greve precisam de apoio. Precisam de apoio legal para procedimentos jurídicos, para moradia àqueles que forem despejados, apoio físico para lutar contra os despejos e apoio estratégico frente à repressão em larga escala. Em muitos casos, especialmente em greves maiores, os inquilinos encontraram apoio entre eles através de ajuda mútua e criando a estrutura necessária para sobreviver. Em outros casos, os grevistas procuraram formas existentes de organização. Mas a iniciativa da greve sempre vem dos inquilinos que ousam começá-la.

Greves Históricas e Suas Características Comuns

Agora veremos como este três elementos vitais foram alcançados em grandes greves de aluguéis ao longo da história.

Terras de De Freyne, Roscommon, Irlanda, 1901

Em 1901, uma greve de aluguéis estourou nas fazendas que pertenciam ao Barão De Freye, na época um famoso proprietário em Roscommon Country, Irlanda. Nas décadas anteriores, os locatários da região tinham consolidado seu poder de organização contra os donos de grandes propriedades, em um movimento ligado à resistência contra o colonialismo e as consequências da Grande Fome.

Esses movimentos não haviam começado em Roscommon, mas os seus habitantes certamente sabiam e tinha participado de algumas práticas semi-ilegais de resistência que foram parte de arrendamentos rurais (como reuniões em massa, resistência física a despejos, sabotagem, incêndios).

No começo do século 20, os residentes estavam organizados sob a União da Liga Irlandesa (UIL), uma organização nacionalista que lidava com questões econômicas e agrárias. Quando os habitantes começaram sua greve autônoma, eles rapidamente entraram em contato com a UIL local, enquanto outros grupos se aliaram para ampará-los na greve, Ao mesmo tempo, um líder de hierarquia superior agiu de forma ambígua, oferecendo às vezes apoio, e outras tentando enquadrar a greve como uma iniciativa independente que não rejeitava os conceitos de aluguel e direito a propriedade, uma vez que a liderança da ULI ainda tentava convencer uma parcela dos donos de propriedades a juntaram-se a eles.

A causa imediata da greve incluiu uma chuva torrencial que destruiu grande parte da colheita, e elevou o preço da tarifa; A recusa de De Freyne em abaixar os custos do aluguel; a acumulação da dívida e o despejo de um grande número de famílias e um longo histórico de injustiça no que diz respeito a posse de terra, agravado pelo episódio recente em que alguns dos moradores de uma área vizinha foram autorizados a comprar terras, enquanto todos os inquilinos de De Freyne foram obrigados a viver como servos.

A greve começou em 1901. A princípio, muitos dos inquilinos de De Freyne se auto-organizaram clandestina e informalmente, uma vez que UIL não tomou iniciativas, embora tenha apoiado os grevistas. A greve se espalhou para outras áreas e durou mais de um ano. Mais de 90% dos arrendatários de terras de De Freyne participaram. Eles resistiram aos despejos erguendo barricadas, atirando pedras na polícia e construindo casas ilegalmente.

Tudo isso causou um escândalo nacional. Em 1903, o Parlamento Inglês foi forçado a adotar extensivas reformas agrárias, colocando um fim no sistema de arrendatários em fazendas.

A greve das vassouras, Buenos Aires e Rosario, 1907

Em agosto de 1907, o município de Buenos Aires decretou um aumento de imposto para o ano seguinte Imediatamente, donos de propriedades começaram a aumentar os aluguéis. As condições nas áreas pobres já eram miseráveis. No ano anterior, a Federación Obrera Regional Argentina (FORA) havia protestado pela diminuição dos aluguéis.

No dia 13 de setembro, as mulheres de 137 apartamentos de um bloco começaram uma greve espontânea. Elas expulsaram os advogados, oficiais, juízes e a polícia que tentaram despejar os inquilinos. Até o final do mês, mais de 100.000 inquilinos participavam da greve liderada pelas mulheres, que organizaram comitês, com a ajuda de mobilizações e estruturas organizadas pela FORA. Elas exigiam a redução de 30% no aluguel; quando a polícia veio para despejar um habitante, elas lutaram com tudo que tinham, atirando projéteis e resistindo fisicamente.

A greve espalhou-se para outras cidades, incluindo Rosario e a Baía Blanca, sendo apoiada por vários trabalhadores, anarquistas, organizações socialistas, da qual a liderança estava o FORA. A repressão policial foi intensa; em uma das vezes, assassinaram um jovem anarquista. No fim, embora a greve tenha impedido muitos despejos, eles não foram bem sucedidos em impedir que os proprietários abaixassem o custo do aluguel. Depois de três meses de muita luta e da deportação de muitos dos organizadores (como Virginia Bolten) sob a Lei dos Residentes, a greve perdeu a força.

Greve de aluguéis de Manhattan, Nova York, 1907

Entre 1905 e 1907, os aluguéis em Nova York subiram 33%. A cidade crescia sem parar, expandindo-se com a chegada de imigrantes pobres vindos para trabalhar nas fábricas, construções e nos portos. Havia também uma onda de atividades anarquistas e socialistas. No outono, os proprietários anunciaram outro aumento nos aluguéis. Como resposta, Pauline Newman, uma trabalhadora de 20 anos, imigrante judia e socialista, tomou a frente e convenceu 400 outras jovens mulheres trabalhadoras a apoiar e convocar uma greve de aluguéis. Já no final de dezembro, elas tinham agregado milhares de famílias; no ano novo, 10.000 famílias pararam de pagar, exigindo uma redução de 18-20% no aluguel. Depois de algumas semanas, por volta de 2000 famílias viram seus aluguéis serem reduzidos. Esse evento foi o começo de alguns anos de luta dos bairros e eventuais controles do Estado sobre o aluguel.

O Exército da Srta. Barbour, Glasgow, 1915

Nos anos antecedentes a 1915, a cidade escocesa de Glasgow cresceu rapidamente com a industrialização nos tempos de guerra e com a imigração de famílias rurais. A classe de proprietários especularam imóveis, deixando 11% das casas vazias e não financiando novas construções, enquanto a classe trabalhadora encontrava-se cada vez mais em espaços lotados e deteriorantes. Organizações como o Conselho Escocês de Moradia e vários outros sindicatos trabalhistas passaram anos trabalhando para que reformas legais na área de moradia e aluguel fossem executadas; eles ganharam algumas novas leis, mas no geral, a situação continuava a piorar. Além disso, com a Primeira Guerra, os preços da comida subiram sem parar e muitos dos homens estavam no exterior. Os donos de propriedades tiraram vantagem, pensando que seria mais fácil explorar famílias pobres uma vez que os homens não estavam presentes. De agosto a setembro de 1913, havia 484 despejos em Glasgow. De janeiro a março de 1915, 6.441.

Na miséria, exploração e carnificina que perseguiam a classe trabalhadora, os donos de propriedades de Glasgow vislumbraram uma boa oportunidade. Em fevereiro de 1915, eles anunciaram um aumento de 25% no preço de todos os aluguéis. Imediatamente, no dia 16 de fevereiro, todas as mulheres pobres da parte sul do bairro Govan organizaram uma reunião. Compareceram as organizadoras da Associação de Mulheres por Moradia de Glasgow (GWHA), uma organização que havia se formado alguns anos antes, mas que tinha ainda pouca experiência. Na reunião, elas criaram a Associação de Mulheres por Moradia do Sul de Govan, afiliada à GWHA. Elas decidiram não pagar o aumento, e no lugar continuar pagando a taxa anterior. Esta decisão se espalhou por todo o bairro.

A GWHA convocou um protesto para primeiro de maio, que atingiu o número de 20.000 participantes. Em junho, as mulheres de Govan venceram e os preços dos aluguéis foram mantidos. O movimento cresceu a partir daí. Em outubro, mais de 30.000 pessoas participaram em greves de alugués por toda a cidade. Eles ficaram conhecidos por exército da Srta. Barbour, batizado assim por causa de uma trabalhadora de Govan, Mary Barbour. Com o objetivo de espalhar e manter a greve, elas organizaram comícios e protestos e defenderam inquilinos contra o despejo e lutando fisicamente com a polícia. Os sindicatos ameaçaram a entrar em greve nas fábricas de armamentos; no final do ano, eles foram bem sucedidos em ganhar a suspensão de quaisquer punições aos grevistas, o congelamento e a manutenção dos preços dos aluguéis no pré-guerra, e a primeira lei de controle de aluguéis do Reino Unido – um importante passo para a questão da moradia social, que foi introduzida não muito tempo depois.

Desde o início, o movimento ganhou apoio de partidos de esquerda e outras formas de organizações que focavam em moradia, como a Federação Escocesa por Moradia Associadas, em contato com o Partido Socialista. Mas é importante notar que as mulheres criaram organizações autônomas ao invés de aderir a organizações tradicionais. Algumas, como Mary Burns Laird, a primeira presidente da GWHA, também participou de partidos políticos (O partido trabalhista, no caso de Laird), enquanto outras, como Srta. Barbour, não eram afiliadas a nenhum partido, criando seu próprio caminho para a luta. Em todo caso, a atividade da GWHA estava muito longe das formas políticas tradicionais de esquerda: as reuniões eram realizadas nas cozinhas, lavanderias, e nas ruas. Em grande parte, a força por trás do acrônimo era a rede de solidariedade que as mulheres pobres já tinham estabelecido em suas rotinas de atividades de apoio mútuo.

Comitê de Defensa Econômica, Barcelona, 1931

Em 1931, Barcelona tinha acabado de sair de uma ditadura. As pessoas aguardavam avidamente os benefícios que a democracia traria…e continuaram esperando. Barcelona havia se tornado a cidade mais cara da Europa, com o aluguel consumindo cerca de 30%-40% dos salários. (o cenário atual é parecido…ou até pior, mas dessa vez, a média das cidades europeias era de 15%). As condições eram abissais. Muitos que não podia pagar o aluguel de um lugar iam para “Casas de Dormir”, quartos em que podiam descansar em turnos das fábricas; muitas vezes, esses quartos não tinham sequer camas, apenas cordas onde os trabalhadores apoiavam os braços.

Uma greve de aluguéis rompeu em abril e os participantes demandavam uma redução de 40% dos aluguéis. A greve durou até dezembro, envolvendo entre 45.000 e 100.000 pessoas em toda a cidade. O Comité de Defensa Económica (CDE), fundada pelo sindicato dos construtores da CNT (Confederación Nacional del Trabajo), desempenhou um papel crucial na coordenação e na divulgação da greve.

Como muitas outras greves, essa foi caracterizada pela solidariedade entre os vizinhos-grevistas, que construíram barricadas e resistiram aos despejos juntos. Quando eles venceram, foram celebrar nas ruas; quando não, entravam nas casas que foram despejadas e celebravam dentro delas. Os mesmos trabalhadores que cortavam a água e a eletricidade pela manhã voltavam à noite para restabelecê-las. Eles eram, claro, filiados ao CNT. Algumas vezes a polícia acabava jogando móveis pela janela ou então os destruindo, irritados por terem de retornar as casa reocupadas. Outras táticas incluíam o que hoje é conhecido por ‘escracho’, isto é, protestos na frente das casas de proprietários.

Obviamente a greve não surgiu do nada. Foi caucada em bases autônomas sólidas e redes de relacionamentos multifacetadas, laços que nasceram da vizinhança e da gentileza. O movimento também era próximo a cultura radical que a CNT vinha desenvolvendo desde a Primeira Guerra Mundial.

“Santiago Bilbao, organizador da CDE, enxerga a greve dos aluguéis como um ato importante de apoio econômico mútuo através do qual o inquilinos podiam contra atacar o poder de mercado e tomar controle sobre suas vidas diárias. O conselho do CDE aos trabalhadores foi: “Coma bem e se você não tiver dinheiro, não pague o aluguel!”A CDE também exige que os desempregados sejam dispensados de pagar o aluguel. Contudo, embora a greve tenha se espalhado através de reuniões organizadas pela CDE, o movimento realmente veio das ruas, o que foi mais decisivo do que qualquer organização”_

-Barcelona (1931), Huelga de Inquilinos

“A greve dos aluguéis nasceu no bairro de Barceloneta onde há uma enorme consciência social, de ambas os pescadores e trabalhadores, cujas vidas são difíceis, e que trabalham na Maquinista Terrestre y Marítima, uma das empresas mais importantes na indústria de metais. Não é surpresa que essas insatisfações emergiram deste bairro histórico de pescadores próximo ao mediterrâneo, onde as casas dos pescadores ainda são conhecidas como ‘caixas de fósforo’. Elas eram casas de 15 a 20 metros quadrados em que famílias inteiras viviam, às vezes com parentes recém chegados na vila […] É o Sindicato Único da Construção da CNT que vai mobilizar as demandas das famílias de trabalhadores, que, pouco a pouco, irão se espalhar às margens da cidade e em cada bairro, a greve terá suas características próprias, suas próprias idiosincrasias e métodos de luta”_

-Aisa Pàmpols, Manel, (2014) “A greve de aluguéis de alquileres e o comitê de defesa econômica” Barcelona, abril-dezembro de 1931. Sindicato da Construção da CNT. Barcelona: El Lokal.

A greve foi efetivamente interrompida por meios severos de repressão, encabeçadas pelo governador Oriol Anguera de Sojo e o presidente da Associação de Proprietários, Joan Pich i Son, que também acabou com a insurreição de outubro de 1934. A nova república democrática não se diferenciava tanto da antiga ditadura uma vez que trouxe todo seu arsenal: a polícia, Guardia Civil (Guarda Civil), e a Guardia de Asalto, a nova polícia paramilitar. A Lei de Defesa da República foi instituída, uma lei ridícula que dava carta baranca à repressão. Alguns foram presos como “prisioneiros políticos” e a CDE foi declarada uma organização criminosa.

Apesar de tudo isso, os protestos continuaram e acenderam as chamas da revolução que estava por vir.

Boa parte dos documentos originais da greve foram destruídos na guerra, talvez pelo medo inspirado por um exemplo de resistência proletária. Consequentemente, nós estamos perdendo uma porção de vozes de mulheres que desempenharam papéis centrais na greve. Organizações formais sempre tiveram mais peso histórico que espaços informais de organização, embora não haja dúvidas que o papel central da CNT foi um aspecto muito importante na greve. No entanto, o fato de que as táticas de greve fossem distintas de bairro para bairro nos diz que a greve não foi centralizada, mas dependia acima de tudo da iniciativa daqueles que nela se engajaram.

  • Barcelona (1931), Huelga de Inquilinos

  • Aisa Pàmpols, Manel, (2014) “La huelga de alquileres y el comité de defensa económica,” Barcelona, abril-diciembre de 1931. Sindicato de la Construcción de la CNT. Barcelona: El Lokal.

St. Pancras, London, 1959-1960

St. Pancras, em Londres, era uma área basicamente de classe trabalhadora, com cerca de 8.000 pessoas vivendo em habitações sociais.

Em 1958, o distrito votou pelo aumento do aluguel nas moradias sociais. No final do mês de julho seguinte, depois que o partido conservador ganhou as eleições distritais, eles aumentaram os aluguéis mais uma vez, só que desta vez de forma mais dramática (entre 100% e 200%), e expulsaram os sindicatos (onde, anteriormente, trabalhadores do distrito tinham de ser membros). Até esse momento havia pouca organização no bairro, mas logo no início de agosto os inquilinos de um bairro distrital formaram uma associação. No final de agosto, já eram 25 associações como essas que haviam se formado e que tinham representantes no comitê central de uma nova organização, a Associação de Inquilinos Unidos (UTA). Don Cook já havia sido secretário de um das poucas (e pequenas) associações de inquilinos existentes antes de 1959.

Desde o começo, a maioria apoiava a ação direta e a greve de aluguéis, mas o Partido Trabalhista, que queria usar as reivindicações dos inquilinos para derrotar o Partido Conservador e obter o controle do distrito de volta, os desencorajou.

Em primeiro de setembro de 1959, uma marcha e uma reunião aconteceram envolvendo 4000 pessoas. Os participantes assumiram posicionamentos que incluíram a recusa de preencher a papelada para avaliar o novo aluguel de cada família e o pedido de solidariedade entre os sindicatos. Nos meses seguintes, os inquilinos continuaram com suas convicções e, com o apoio dos sindicatos, criaram comitês em cada quarteirão, levando delegados para assembleias que muitas vezes chegavam a 200 ou mais participantes. Eles publicaram três boletins semanais a fim de disseminar a informação das lideranças para as bases. No final do ano, a UTA contava com 35 associações de inquilinos.

As mulheres protestavam a noite em frente as casas dos conselheiros distritais. Cada conselheiro era atacado duas vezes por semana. Eles perderam muitas noites de sono. Uma das poucas histórias da greve escritas por um participante (Dave Burn) reconhece que as mulheres “formavam a espinha dorsal do movimento, permanecendo ativas todos os dias e apoiando umas as outras”. Mesmo assim, a maior parte do relato de Brun foca em organizações formais, com delegados predominantemente homens.

O aumento do aluguel foi marcado para 4 de janeiro de 1960. A princípio, 80% dos inquilinos de moradias sociais não pagaram o aumento, apenas o aluguel passado. Depois de muitas ameaças e com a iminência do despejo do distrito, a participação na greve caiu a um quarto dos inquilinos, por volta de 2000. Em fevereiro, o partido trabalhista aconselhou a UTA a cancelar a greve para que eles pudessem negociar com os conservadores. A AIU se recusou: sem a greve, eles estariam completamente indefesos e inúmeras famílias já estavam enfrentando o processo de despejo.

A fim de concentrar suas forças, a UTA organizou o pagamento coletivo da maioria dos aluguéis em atraso para que eles não precisassem lutar contra tantos despejos ao mesmo tempo. Os primeiros casos foram julgados e três despejos foram marcados para o fim de agosto. Inquilinos começaram a organizar suas defesas, determinados em não permitir um único despejo das habitações sociais. Em meio aos protestos, em julho, os líderes da UTA se reuniram com os conselheiros distritais – mas as negociações fracassaram, já que os Conservadores não queriam ouvir nada sobre os problemas dos moradores. A partir daquele momento a UTA começou uma greve geral dos inquilinos, e no meio de agosto, mais de 250 avisos de despejos foram comunicados.

Ao longo de agosto, até o dia 28, um grande número de barricadas foram erguidas; os inquilinos impediam que outros furassem a greve e instalaram um sistema de alarmes em todo o bairro, assim os trabalhadores poderiam sair e voltar para defender as casas uns dos outros. Quanto ao dia 14 de agosto, os números de avisos de despejos tinham subido para 514. O Partido Trabalhista e o Partido Comunista temiam a crescente tensão e pediram pelo fim da greve, mas era tarde demais.

Na manhã de 22 de setembro, 22.800 policiais atacaram. Seguiu-se um confronto de duas horas em que um policial foi seriamente ferido. A polícia conseguiu despejar duas casa, mas em um quarteirão os confrontos continuaram até a tarde. Por volta de 300 trabalhadores locais vieram para defender a greve – mas os sindicatos trabalhistas não ofereceram nenhum apoio. À tarde, 1.000 policiais atacaram a marcha de 14.000 inquilinos. Os confrontos continuaram. O líder do conselho distrital garantiu que ele estava pronto para se encontrar com os representantes da AIU. No dia seguinte, o Ministro do Interior declarou a proibição de todas as reuniões e manifestações.

Por causa do escândalo político que os protestos tinham causado, o Partido Trabalhistas abandonou os inquilinos e começaram a denunciar os “agitadores” e “radicais”. Eles alegavam que havia o envolvimento de agitadores de fora e insistiram que o conflito deveria se resolver através do diálogo – apesar de que durante todo o ano os Conservadores do distrito quase sempre negaram a possibilidade de diálogo. Enquanto isso, depois de negociações, os Conservadores aprovaram uma pequena redução no aluguel.

Sob ataque tanto vindo da esquerda quanto da direita e enfrentando ameaças diárias de novos despejos, a UTA decidiu mudar suas estratégias para evitar mais despejos. Eles pagaram os aluguéis atrasados dos vizinhos que corriam o maior risco e decidiram apoiar o Partido Trabalhista para remover os Conservadores nas próximas eleições. Em maio de 1961, o Partido Trabalhista ganhou as eleições do conselho distrital, 51 conselheiros contra 19. Vários delegados da UTA tinham ocupado postos e as principais reivindicações de seus mandatos foram a reforma dos aluguéis.

Os inquilinos aguardaram a reforma do plano dos aluguéis nas habitações sociais…e esperaram…e esperaram. Dois moradores que haviam sido despejados mudaram-se para novas casas, mas, depois de alguns meses, os conselheiros Trabalhistas anunciaram que a reforma dos aluguéis não seria possível. A greve havia fracassado.

Autoriduzione, Itália, 1970s

Os anos 60 e 70 foram uma época de crescente precariedade em questões trabalhista e de habitações na Itália e também um momento no qual as pessoas sonhavam por mundo sem exploração e ousaram construí-lo. Em 1974, contando com a neutralidade do Partido Comunista, os tecnocratas visionários dos setores industriais e financeiros elaboraram o Plano Carli. Esse plano pretendia aumentar a exploração do trabalho e reduzir o gasto público. Ao longo dos anos 60, um forte movimento de trabalhadores autônomos na Itália tinha influenciado o nascimento de um movimento autônomo nos bairros baseado em comitês de bairro autogeridos no qual as mulheres desempenhavam um papel crucial. Interessados em práticas imediatas de sobrevivência, esses comitês organizaram “auto-reduções” em que os inquilinos e vizinhos decidiam por si mesmos abaixar o preço dos serviços – pagando, por exemplo, o 50% do preço da água e eletricidade.

Em Turim o movimento avançou consideravelmente no verão de 74. Quando as empresas de transporte público decidiram aumentar as tarifas, a resposta foi imediata. Participantes impediram espontaneamente a circulação de ônibus em vários pontos, distribuíram panfletos e enviaram delegados à cidade. A partir daí, os principais sindicatos militantes começaram a organizar uma resposta popular: iriam imprimir as passagens eles mesmos e voluntários iriam entregar nos ônibus, cobrando os preços anteriores. Através da força coletiva, eles obrigaram as companhias a aceitar a situação.

As reduções autoimpostas nos pagamentos da eletricidade se espalharam rapidamente e foram organizadas em duas fases: primeiro, coletando assinaturas que se comprometiam a participar da auto-redução, em ambas as fábricas e bairros; segundo, trabalhadores nas portas dos correios, beneficiando-se de informações vazadas das utilidades de sindicatos públicos, informavam-se sobre o local onde as contas eram enviadas. Depois de algumas semanas, 150.000 famílias em Turim e da região de Piedmont estavam participando.

As auto-reduções eram fortes em Turim porque os sindicatos regionais eram autônomos dos comitês nacionais, controlados pelo Partido Comunista, que assegurava que todas as iniciativas de ação direta contra o aumento de preços fossem impedidas. Por isso, em Turim, os sindicatos trabalhistas podia estender suas influências e apoiar iniciativas espontâneas e aquelas vindas de comitês de bairro, enquanto em cidades como Milão, os sindicatos não apoiavam essas iniciativas, assim como em Nápoles, onde sequer havia sindicatos. Em algumas cidades, como Palermo, estudantes e jovens conquistaram auto-reduções através de ações ilegais.

O movimento estendeu as auto-reduções aos aluguéis, visando que o aluguel não correspondesse a 10% do salário das famílias. Várias táticas foram empregadas desde esforços de pequenos grupos a iniciativas de comitês de bairro amparadas pelos sindicatos mais radicais. Na primeira metade dos anos 70, participantes entraram em 20.000 casas, bloqueando a lógica comercial de aluguéis temporariamente. Houve também greve de inquilinos em Roma, Milão e Turim. O movimento feminista teve grande influência como parte desses esforços. Nesse contexto, as mulheres desenvolveram teorias de exploração em três bases (dos chefes, dos maridos e do estado) além do trabalho doméstico, que continuam sendo questões essenciais atualmente.

Soweto, Africa do Sul, década de 1980

Soweto é uma área urbana de Joanesburgo com grande densidade populacional. Nos anos 80, havia 2,5 milhões de habitantes. Nas últimas décadas do Apartheid, os moradores de Soweto viveram em condições de extrema pobreza e exclusão social. Em 1976, tais precariedades levaram a um levante em Soweto com uma série de poderosos protestos; a invasão da polícia causou dezenas de mortes. As condições materiais da área começaram a melhorar, mas graças aos esforços contínuos dos moradores.

A situação das moradias era apavorante. As casas eram de baixa qualidade, não higiênicas e desordenadas. Os aluguéis e serviços acumularam-se a um terço do salário médio dos residentes, além disso a taxa de desemprego crescia desenfreadamente. No dia primeiro de junho de 1986, quando houve rumores de um aumento no preço dos aluguéis, milhares de moradores de Soweto pararam de pagar o aluguel e os serviços da prefeitura de Soweto. A prefeitura tentou suspender a greve com despejos, mas os vizinhos resistiram fisicamente. No final de agosto, a polícia atirou em uma multidão que resistia a um despejo, matando mais de 20 pessoas. A indignação e raiva se intensificaram e as autoridade tiveram de suspender os despejos.

No começou de 88, as autoridades declaram estado de emergência para tentar impedir o levante de resistência negra em todo país. O único ponto que não conseguiram extinguir foi a greve de inquilinos de Soweto. No meio do ano, as greves continuaram e as autoridades cortaram a eletricidade de quase toda a área como meio de pressionar pelo fim da greve.

A imprensa declarava que a greve era inexistente, apenas sustentada pela violência de jovens militantes. A realidade mostrou-se diferente: apesar de 30 meses de estado de emergência que paralisou muitas das atividades do movimento anti-apartheid, a maioria dos moradores continuou a apoiar a greve. No fim, as autoridades reconheceram que tinham perdido completamente o controle. Em dezembro de 89, eles dispensaram todos os aluguéis atrasados – uma perda de mais de 100 milhões – interromperam os despejos definitivamente e, em pelo menos 50.000 casos, cederam a propriedade das casas aos seus respectivos locatários.

Antes dessa greve, o movimento anti-apartheid já havia utilizado greves de aluguéis como tática em protestos contra o governo para que a população toda se familiarizasse com eles; as mobilizações e organizações haviam se estendido para práticas solidárias. Mas a primeira grande greve de aluguéis começou em setembro de 84 em Lekoa como resposta imediata de vizinhos contra um aumento nos aluguéis; a organização mais envolvida foi a Associação Cívica de Vaal, sendo Vaal uma região local. Esta foi provavelmente a fonte da tática de greve de aluguéis que o Congresso Nacional Africano (CNA) dentre outras organizações sequencialmente começaram a utilizar.

De forma similar, a greve de aluguéis em Soweto emergiu do próprio bairro como defesa imediata às condições e imperativos de sobrevivência. É um exemplo clássico de redes informais de bairros que são a chave de organizações grevistas, com estruturas formais criadas quando forem necessárias uma vez iniciada a greve. Apesar de serem excluídas de algumas organizações formais, as mulheres foram essenciais na organização e manutenção das redes comunitárias.

Boyle Heights Mariachis, Los Angeles, 2017

Em uma ação racista de gentrificação, um proprietário aumentou os custos de aluguéis entre 60-80% em um pequeno número de apartamentos de um prédio perto do Mariachi Plaza, no bairro de Byle Heights na cidade de Los Angeles. Metade dos inquilinos imediatamente formou uma coalizão (incluindo aqueles que não foram afetados diretamente com o aumento do aluguel) e exigiram o diálogo com o dono. Quando o proprietário tentou tratá-los separadamente, a coalizão começou uma guerra de aluguéis. Em seguida, a União de Inquilinos de Los Angeles (LATU) começou a apoiar a greve, ajudando a mobilizar e assegurar recursos legais.

Depois de nove meses, eles receberam um aumento de 14%, um contrato de três anos (muito raro nos Estados Unidos), o cancelamento de qualquer penalidade por não pagamento e o direito de negociar contratos coletivamente depois de três anos.

Burlington United, Los Angeles, 2018

Uma greve teve início em três prédios do mesmo proprietário na Av. Burlington, no bairro latino, em Los Angeles, afetado por uma gentrificação rápida, que fez o número de desabrigados subir exponencialmente. Quando o proprietário aumentou os aluguéis dos locatários entre 25 e 50%, 36 dos 192 apartamentos entraram em greve de aluguéis; as péssimas condições dos prédios também foram alvo de reclamações dos inquilinos. Na segunda semana, um total de 85 apartamentos entraram em greve, quase a metade. Os moradores se organizaram com uma declaração de greve. Logo depois, a União de Inquilinos de Los Angeles (UILA) local e uma organização ativista de defesa legal de um bairro vizinho deram assistência aos grevistas.

A ajuda jurídica dividiu os moradores ao longo do processo penal. Metade dos apartamentos venceram seus processos, os outros foram forçados a sair.

Parkdale, Toronto, 2017-2018

Em 2017, os inquilinos, que ocupavam 300 apartamentos em vários prédios cujo dono era o mesmo, entraram em uma greve bem sucedida no bairro de Parkdale, em Toronto. O bairro estava passando por um processo de gentrificação intenso e a agência imobiliária em questão já tinha uma má reputação entre seus inquilinos de apartamentos em condições ruins e que tentava expulsá-los via aumentos de preço.

Quando a imobiliária tentou aumentar os aluguéis, alguns vizinhos decidiram anunciar a greve; outros se juntaram, se organizando em uma assembleia. Outro elemento importante nesse contexto foi a participação da Parkdale Organizada, uma organização de inquilinos de outro bairro que já haviam se envolvido em outras luta em 2015. A Parkdale Organizada ajudou na mobilização da greve, batendo nas portas dos afetados, oferecendo recursos e compartilhando modos de resistência. Depois de três meses eles conseguiram impedir o aumentos dos aluguéis.

Inspirados por esse exemplo, inquilinos de um outro prédio grande, com 189 apartamentos, começaram uma greve no ano seguinte. Quando a imobiliária decretou um aumento severo nos aluguéis, os inquilinos de 55 apartamentos organizaram uma assembleia e entraram em greve. Depois de dois meses em greve, eles foram atendidos em suas demandas e o dono cancelou os aumentos.


Características Comuns

A maioria das greves começaram pela iniciativa de mulheres; em todos os casos, elas desempenharam um papel importante. As greves sempre ocorreram em contextos em que os inquilinos passavam por condições parecidas: o aluguel que toma grande parte dos salários; o perigo de perderem suas casas e uma onda de indignação causada por condições de saúde precárias, contextos como o colonialismo Inglês (como na greve de Roscommon), ou em reformas que favorecem uns e prejudicam outros. Quase sempre existe uma centelha: frequentemente, o aumento nos preços ou o declínio das oportunidades econômicas dos inquilinos.

Geralmente, as greves começaram espontaneamente, o que não significa que elas aconteceram do nada, mas que resultaram – em contextos favoráveis – de iniciativas de vizinhos, implementadas via assembleias ou por redes efetivas de bairros. Partindo deste ponto, elas criaram suas próprias organizações ou receberam apoio de organizações já existentes. Em outros casos, uma organização formal existe desde o começo da greve, mas eram organizações bastante pequenas criadas por locatários, não por grandes organizações sindicais ou partidos. Encontramos apenas um caso em que uma greve de aluguéis foi convocada por uma grande organização – em Barcelona, 1931.

No que diz respeito as chances de vitória, é imprescindível que a greve se alastre o máximo possível, mas não é necessário que envolva uma maioria. As greves venceram com a participação de um quarto ou um terço dos inquilinos que estão sujeitos ao mesmo proprietário. Nos casos de greves realizadas em um determinado território e não endereçadas a um dono em particular, desde que interrompam suficientemente a normalidade, elas podem provocar uma crise no governo, saturando o sistema legal, mesmo tendo a participação de uma proporção bem menor do total de habitantes de uma cidade. A determinação em continuar firmes e serem solidários ao invés de buscar soluções individuais é mais relevante que o número de pessoas em greve.

Outro fator, talvez o mais importante, seja o contexto. Quais são os aparatos do Estado para repressão? É melhor para o governo esmagar a desobediência, ou evitar conflito e restaurar a sua imagem?

Condições Atuais: Mais do que Adequadas

Como vimos, certas condições são necessárias para que uma greve de aluguéis se alastre pela população: precariedade que torna impossível para mais e mais pessoas terem acesso a moradia e um certo senso de que as coisas estão indo muito mal. Essas condições existem atualmente?

Cada vez mais o grande fundo internacional de investimentos está financiando a pobreza ao redor do mundo e aumentando os aluguéis a níveis recordes. Enquanto eles dominam o mercado imobiliário, o preço que as pessoas têm de pagar por acesso é absurdamente alto.

Por exemplo, na Espanha, o preço de aluguéis por moradia atingiu um patamar histórico e teve seu ápice em fevereiro de 2020 (o último mês em que estes números estavam disponíveis no momento em que este texto foi escrito) com 11,10 Euros por metro quadrado, um aumento de 5,6% em relação a fevereiro de 2019. As cidades com os preços mais elevados são Madri (15 Euros) e Catalunha (14,50 Euros). Em Madri o preço é de 16,3 euros por metro quadrado, um crescimento de 3,5% e em Barcelona, 16,8 euros por metro quadrado, um aumento de 3,7%. No entanto, todas as cidades turísticas sofreram aumentos similares. Entre 2014 e 2019, o preço médio de aluguéis na Espanha subiu 50%, extrapolando seu maior pico desde a crise de 2008

No mesmo período, a média salarial na Espanha não sofreu reajuste nem de 3%. Isso mesmo: 50% de aumento em custos de habitação e 3% de ajuste salarial. Mas o cálculo da média salarial inclui a classe trabalhadora e também os milionários, sendo que os últimos não precisam pagar aluguel. Se nos referirmos ao salário médio ou o salário da maioria das pessoas (quer dizer, o salário recebido pelas massas de trabalhadores), notamos que ele subiu muito menos e que tem ainda decaído em alguns poucos anos. Em resumo: existem agora um número enorme de pessoas que não podem ter acesso a moradia. Nós já acompanhávamos esta situação muito antes da pandemia do coronavírus.

A falta de acesso a moradia também aparece nas estatísticas. Em 2018, houve mais de 59.000 despejos na Espanha, com um crescente despejo por não pagamento de aluguéis. Em 2019, houve mais 54.000, 70% pela Lei Urbana de Aluguéis. Em ambos os casos, as cidades de Catalunha e Andaluzia lideraram os números de despejos. A diferença entre 2018 e 2019 é explicado pela resistência a despejos que surgiu em todos os lugares e pela onda de menos execuções de hipoteca a cada ano, já que poucas pessoas conseguem uma hipoteca e os bancos estão mais dispostos a negociar depois das explosões de atos de resistência nos últimos 12 anos. Entre 2017 e 2019, o número de desabrigados em Madri cresceu 25%, oficialmente atingindo 2583 pessoas, embora outros especialistas digam que devem haver, na verdade, por volta de 3000 pessoas. Existe a estimativa que 40.000 estejam em situação de rua na Espanha (nos Estados Unidos, o número de moradores de rua só em Los Angeles ultrapassa esse número).

A pandemia do coronavírus apenas exacerba a questão. Muitas pessoas perderam seus empregos; não é surpresa que as medidas emergenciais dos governos tem estão muito mais preocupadas com o poderio bélico e reforço policial, em proteger instituições financeiras, empresários e hipotecários, e deixam portanto as pessoas em situações precárias desprotegidas – locatários, imigrantes, e os moradores de rua. Por outro lado, tem sido um momento em que iniciativas de solidárias tem se espalhado na velocidade da luz, com os cacerolazos (panelaços) nas janelas e sacadas e uma rápida expansão de reivindicações sociais, apesar do estado de sítio imposto pelo governo.

Em resumo, não só é o momento certo para uma greve de aluguéis, mas é preciso mais que nunca organizar tais iniciativas imediatamente. Se este não é o momento – taxas recorde nos preços dos aluguéis, uma pandemia, e disseminação de iniciativas sociais – talvez não haja nenhum outro momento tão adequado para uma greve de aluguéis?

Preocupações dos Participantes da Greve

É compreensível que os arrendatários que sejam favoráveis a greve tenham muitas dúvidas.

Preocupações Práticas e Legais

As primeiras dúvidas surgem, inicialmente, pela falta de familiaridade com greves de aluguéis: pelo que sabemos, não houve nenhuma greve de aluguéis na Espanha desde 1931 – nem no Brasil na história recente. Como funciona? Quais são meus direitos e as possíveis represálias eu receberei caso pare de pagar o aluguel?

Resumindo, você só precisa de duas coisas para aderir à greve de aluguéis: pare de pagar o aluguel e avise outras pessoas. Você pode falar ao proprietário que não pagará o aluguel ou não. Comunicar pode fazer com que a greve se torne mais forte, mas no caso de que muitos inquilinos venham a participar, isso por si só vai passar a mensagem. A União de Inquilinos da Gran Canaria tem uma cópia de um formulário que você pode enviar ao proprietário.

O segundo passo é muito importante: informar a outras pessoas que você está participando da greve de aluguéis. Quanto mais pessoas participarem, mais seguro será para cada pessoa. Conversar com seus vizinhos é a melhor maneira de encorajá-los a se juntar à greve. É também muito crucial falar sobre a greve com possíveis redes que possam providenciar ações solidárias no seu bairro. Podem ser associações de bairro, sindicatos de habitação ou de inquilinos, ou mesmo redes de solidariedade baseadas em sindicatos de trabalhadores. Se eles souberem mais ou menos quantas pessoas estão em greve, serão capazes de distribuir informações e recursos e ajudar a organizar uma defesa coletiva no caso de processos de despejo. Lembre-se: juntos somos mais fortes.

Quanto as consequências legais, se você parar de pagar o aluguel, o proprietário pode iniciar um processo de despejo para te expulsar do seu apartamento. Mas em muitos casos, quando um número relevante de inquilinos de um mesmo proprietário param de pagar aluguel, o proprietário é levado a chegar em um acordo que inclua a redução do preço. Em uma situação de crise geral como a que estamos vivendo, é muito possível que o Estado vá intervir impedindo os despejos caso muitas pessoas entrem em greve.

Você pode acessar mais informações sobre direitos legais (no estado espanhol) [aqui] (https://suspensionalquiler.org) e aqui.

Aspectos Emocionais

O aspecto emocional é fundamental em uma greve de aluguéis. Casas em situação precária existem em todos os lugares, todos os dias. É elemento essencial da faísca de uma greve de aluguéis é a coragem daqueles que dizem Chega! e decidem enfrentar riscos, que tomam a iniciativa. É um pouco paradoxal: se todos se impõem, a vitória é quase certa e há pouco risco. Mas se todos hesitam, sem a segurança do grupo, os poucos que se levantam podem perder suas casas.

No entanto, certamente estamos com a vantagem agora. Milhões de pessoas de bairros humildes estão na mesma situação – e nós sabemos que estamos nessa. Não existem “poucos” que estão correndo risco, porque já existem milhares que perderam seus empregos, e não conseguirão pagar os aluguéis, e esse número apenas irá aumentar. Se sofrermos em silêncio, talvez não nos arrisquemos mais., mas perderemos por igual nossas casas. Se levantarmos nossas vozes e coletivizarmos os esforços, temos tudo a ganhar e nada a perder. A pequena parcela um pouco privilegiada de pessoas – aqueles que pode sobreviver um mês, dois meses, três meses sem receber, ou aqueles que foram mantidos em seus empregos – também têm muito a ganhar caso se juntem as milhares de pessoas que não tem outro jeito, porque nenhum de nós sabe quanto tempo a quarentena vai durar ou quanto tempo a crise econômica irá perdurar. Independente da pandemia, na maior parte das cidades da Espanha, nós já estávamos perdendo acesso a moradia. Se a normalidade voltar…então o turismo retornará junto com o Airbnb, a gentrificação e a intolerável pressão do contínuo aumento do aluguel.

Temos também outra vantagem ao nosso lado: durante o estado de emergência, os tribunais estão suspensos. Algumas cidades já adiaram muitos despejos e outros municípios não vão poder lidar com eles de jeito nenhum, ou então muito lentamente.

Não poderia haver uma época melhor para começar uma greve de aluguéis. A única coisa necessária é fazer com que nossas vozes sejam ouvidas e coletivizar a situação que estamos vivenciando.

Organizações Especializadas na Luta por Moradia

Organizações sociais têm um papel importante em uma greve de aluguéis. Elas pode convocar uma, apoiá-la – ou até prejudicá-la. Quais são as características de uma relação forte e efetiva entre o movimento por habitação e as organizações?

Primeiro, precisamos reconhecer a realidade dos movimentos por habitação. O movimento engloba todos que sofrem com condições precárias de habitação ou daqueles que correm perigo de perdê-la. Eles, as pessoas precarizadas, são aqueles que têm tudo a perder e tudo a ganhar; eles quem tem de tomar a iniciativa e convocar uma greve de aluguéis ou outros atos de resistência.

A organização é a forma estratégica mais importante em uma greve de aluguéis, mas não é necessária nenhuma organização específica que seja essencial. Uma organização que já é muito forte pode convocar a greve, como em Barcelona em 1931. Mas se os vizinhos precisarem entrar em greve, eles mesmo podem convocar a greve e criar organizações que eles julguem necessárias e coordenar suas ações. Mesmo quando há organizações especializadas em habitação, se eles não entrarem em contato com as demandas imediatas, os moradores irão ignorá-la e criar suas próprias organizações. E no mais desafortunado dos casos em que uma organização se considere dona do movimento e tente liderá-lo de acordo com suas próprias políticas que não as reivindicações dos moradores, como aconteceu na greve de St. Pancras, Londres, 1960, ela terminará por sabotar a greve e prejudicar os moradores.

O fato de a vasta maioria de greves de aluguéis terem sido organizados por mulheres reflete esta dinâmica: as organizações formais de esquerda surgiram grandemente apoiadas em uma lógica patriarcal que coloca os “interesses dos partido” a frente das necessidades humanas que afetam as pessoas. Por esta razão, as mulheres frequentemente se organizam suas próprias estruturas, dentre outras coisas, com suas próprias redes de comunicação e seus métodos, sem estarem ligadas a nenhuma grande organização que já exista.

Um relacionamento efetivo e forte com os movimentos por moradia e outras organizações sociais pode ser baseada nos seguintes princípios:

  1. As organizações sociais respondem às necessidades dos moradores. Elas podem auxiliar na formulação de estratégias, mas não devem não deve se negar a ver a realidade e inclinações dos residentes.

  2. As organizações existem para apoiar os moradores, não para guiá-los. Se a organização decidir que a liderança deles é essencial, os moradores muito provavelmente terão de criar suas próprias organizações.

  3. As principais estruturas que as organizações podem oferecer são o apoio psicosocial e defensivo. Ao que se refere o primeiro, a organização ajuda os moradores a não sentirem que estão sós – que juntos são forte e podem vencer. Nesse sentido, o essencial é confortar as pessoas e não desenconrajá-las ou demonstrar medo ou falta de prudência. Quanto ao segundo, essa é a atividade de coordenar a resistência física a despejos e a reunião de aparatos legais para em caso de processos jurídicos. Sem esta ação, os grevistas perderam as casas um por um.


Por outro lado, quais são as características de uma relação contra produtiva entre organizações sociais e o movimento por habitação?

Ativismo especialista. É admirável quando as pessoas dedicam suas vidas em solidariedade às causas por dignidade e liberdade. Mas dinâmicas problemáticas surgem se a especialização é derivada de uma abordagem que gera distância entre aqueles que são “experts” e as pessoas “normais”. Na luta por moradia, os ativistas podem estar mais atentos às perspectivas de outros ativistas “organizados” e militantes que sobre o que está acontecendo de fato aos moradores e aqueles que vivem em condições precárias.

Consequentemente, eles priorizam os interesses da organização (afiliando mais membros, aparecendo na imprensa, ganhando status através das negociações com as autoridades), quando na verdade os interesses dos moradores deveria sempre vir em primeiro lugar (ter acesso a moradia decente e estável). Esta alienação entre ativistas e vizinhos se manifesta como falsa prudência. É verdade que uma greve de aluguéis é uma luta difícil. Não é algo fácil de se propor. No entanto, tomar um posicionamento conservador diante da situação parece-nos perigoso – mas é inegável que no meio desta crise atualmente, o perigo já está aqui. Este mês, dezenas de milhares de pessoas não poderão pagar o aluguel, sem conta as outras tantas que já vivem nas ruas em situação de absoluta vulnerabilidade.

O problema do ativismo especialista é substancialmente grande dentro as classes economicamente privilegiadas. É maravilhoso quando pessoas vindas de famílias financeiramente estruturadas resolvem lutar lado a lado em favor das pessoas em vulnerabilidade social. Mas é totalmente inaceitável que essas pessoas tentem determinar quais são as prioridades ou definir o rumo das lutas. Como em todos os casos em que existem privilegiados, estes devem ser transparentes com os companheiros e honestos consigo mesmos para apoiar as lutas das pessoas e não tentar liderá-las.

Pequena escala ou visão fragmentada. É compreensível que as pessoas que passaram muito tempo lutado por moradia se sintam abaladas ou em dúvida sobre uma convocação geral para uma greve de aluguéis. Realmente, seria problemático se eles não se sentissem assim. Faz mais ou menos um século desde que presenciamos uma greve de aluguéis nesta escala. Mas nós devemos levar em conta que faz um século desde que o capitalismo sofreu uma crise tão intensa quanto essa que está em curso agora – e a greve de aluguéis continua sendo uma ferramenta eficiente. Saber que inquilinos e organizações que tem participado em greves de aluguéis nos últimos três anos em Toronto e em Los Angeles estão apoiando o chamado internacional de greve, deveria nos trazer um pouco de paz de espírito.

Em relação aos perigos em dividir as lutas, consideramos totalmente inaceitável que não leve em conta as necessidades dos moradores de rua e aqueles que não tem documentos. Embora seja legítimo que muitas organizações busquem mudanças de curto prazo em um campo mais especializado, eles não devem contribuir para a fragmentação das lutas, minando as possibilidades de solidariedade. É uma tática do Estado oferecer soluções para as pessoas com hipotecas, mas nada aos inquilinos. Não deveríamos reproduzir esta lógica, mesmo que que tenhamos boas intenções. Assim, todas as convocações devem apoiar a suspensão de despejos e também legitimar a prática de ocupação de casas vazias, ou pelo menos estar em contato com convocações que o fazem.

A dicotomia Reforma/Revolução. Para falar francamente, é uma ilusão pensar que é possível vencer uma revolução e abolir todas as estruturas opressivas de um dia para o outro: revoluções consistem em um longo caminho luta após luta. É também um erro acreditar que é possível adquirir reformas reais sem gerar uma força que ameace o Estado: os Estados mantém o controle social e o bem-estar da economia e não protegem aqueles que são dispensáveis as suas causas. Quase todas as reformas realmente benéficas foram obtidas por movimentos revolucionários, e não por movimentos reformistas.

Há muitos debates sobre a relação entre o Estado e os movimentos políticos, táticas e estratégias. Mas somos mais fortes quando trabalhamos juntos – quando todos que estão engajados em pequenos ganhos urgentes junto com outros que trabalham contra as fontes da exploração e concentram seus olhares em um horizonte em que a exploração não exista mais. No final do dia, nossas lutas consistem em um ecossistema. Jamais convenceremos o mundo todo a pensar como nós, nem iremos dominar todos os movimentos sociais. Nós deveríamos cultivar relacionamentos saudáveis baseados na solidariedade entre partes diferentes de uma mesma luta, partilhando sempre que possível – e quando não for possível, permitindo que cada um continue mais ou menos em um caminho paralelo. Para que a solidariedade possa funcionar, é necessário respeito ao trabalho imediato em que algumas pessoas se focam e ao mesmo tempo não denunciar nenhum grupo alegando “radicalismo” para a imprensa ou para a polícia.

É fácil para alguém que gasta metade de seu salário em aluguel estar contente com uma lei que coloque um teto nos aluguéis; para alguém que não possa pagar um plano de saúde que exista o serviço de saúde público; para alguém que vive em um lugar por ocupação receba com alívio a notícia de que há a suspensão de despejos; para alguém que é imigrante receber proteção legal contra a deportação. Quem não vivencia nenhuma destas situações deve ter empatia para com esses passam por isso muito antes de solidificar suas ideias políticas.

Ao mesmo tempo, muitos de nós vivenciaram precariedades não escolheram criar uma identidade a partir disso. Precisamos chegar as raízes do problema. A saúde pública e os aluguéis sob controle é algo ótimo, mas reformas legais e “públicas” que sejam boas o suficiente não podem asseguradas, uma vez que matem o poder sob elas é o Estado, logo não farão nada por nós se o Estado decidir que é inconveniente manter o que ele nos concedeu anteriormente. Porque esta pandemia resultou nesta crise tão grave? Porque o Estado vem continuamente reduzindo a qualidade dos serviços públicos de saúde. Porque os aluguéis subiram tanto? Porque o Estado passou a Lei do Aluguel Urbano, levando com ela os amparos ganhos por outras gerações.

Medidas de curto-prazo são necessárias, mas são igualmente necessárias as perspectivas revolucionárias, ao menos para quem que seja que não queira passar o resto da vida lutando por migalhas, a mera sobrevivência.


Algumas Conclusões

O Capitalismo é global. Os Estados se apoiam a níveis globais. A revolução em um só lugar não é possível, pelo menos não por um período prolongado. Uma visão internacionalista é essencial neste tempo de pandemia, xenofobia, fronteiras e corporações transnacionais. Na Espanha, o internacionalismo tem estado fraco ultimamente. Na América Latina, houve protestos e revoltas por transporte público, houve golpes de extrema direita, houve meses e meses de luta e muitas mortes. Na Espanha, nem um chiado. Em Hong Kong, houve quase um ano de protestos contra medidas autoritárias. Na Espanha, houve silêncio. Ao longo de 2019, do outro lado do Pirineus, os coletes amarelos estavam lutando contra medidas de austeridade. Quantos protestos aconteceram na Espanha em solidariedade a estes levantes?

Movimentos por liberdade e dignidade e contra a exploração devem ser mundiais. Agora estamos sofrendo com uma pandemia global – e os Estados mais fortes, da China aos Estados Unidos, estão lidando com apatia e incompetência mortais ou com um nível de totalitarismo de vigilância (drones, localização em tempo real de indivíduos, câmeras em todos os espaços públicos que utilizam reconhecimento facial). Na Espanha, nós percebemos uma soma de incompetência e autoritarismo policial.

A greve de aluguéis já está se espalhando pelos vários países neoliberais, onde um vasto número de pessoas correm o risco de perder suas casa. Não há dúvidas de que é essa a situação aqui na Espanha também. Se não somos capazes de internacionalizar nossas lutas agora, quando iremos?

Pela solidariedade e dignidade, contra a precarização. #GrevedeAluguelJá

“É necessário que ninguém viva por cima de nós
sugando nosso sangue e nos negando o direito de viver”

-Virgínia Bolten